Há
pelo menos três décadas a indústria brasileira agoniza sem respiradores nem
UTIs
É
difícil neste momento desesperador fugir do tema da pandemia. Mas alguém
precisa pensar em outro paciente moribundo no país, a indústria, atingida
também por um poderoso vírus que vem destruindo sua capacidade de produção há
décadas. Agora, a doença se agravou. A Ford, há um século no país, vai embora.
A Mercedes suspende a produção de sua fábrica no Brasil. A Sony sai correndo de
Manaus.
É
o avanço da desindustrialização. Alguns analistas dizem se tratar de um
processo mundial de transição da economia industrial para a de serviços. O
processo existe, mas, no caso brasileiro, é acelerado e se dá antes de o país
atingir a maturidade no setor.
A fatia brasileira na indústria mundial, que chegou a 2,8% em 2005, recuou para 1,8% agora. E a indústria tem hoje participação no PIB nacional de 11% - tinha 17,8% em 2004 e 35% em meados dos anos 1980. Ou seja, há pelo menos três décadas a indústria brasileira agoniza, sem respiradores nem UTIs.
Esses
números e outros abaixo mostram um processo de desindustrialização evidente.
Embora a tragédia da pandemia dificulte raciocínios sobre futuro, a coluna
colheu opiniões de dois grandes economistas brasileiros não submissos ao
mercado financeiro e estudiosos da indústria. A pergunta foi: como reverter
esse processo?
Para trás
Luiz
Gonzaga de Mello Belluzzo, professor da Unicamp e das Faculdades de Campinas,
observa que a desindustrialização teve início na “década perdida” (1980),
quando a crise da dívida e a hiperinflação impediram o setor de incorporar
novas tecnologias da Terceira Revolução Industrial. A estabilização dos anos
1990 livrou a economia da hiperinflação, mas foi feita com a “combinação
perversa de câmbio valorizado e juros estratosféricos”. As consequências foram
graves para a indústria, que outra vez deixou de acompanhar transformações
globais em várias áreas.
Nos
anos 2000, com a expansão sino-americana e a demanda de commodities, a
indústria brasileira “pegou uma beirada na festança global”, segundo Belluzzo.
O superávit comercial da indústria subiu de US$ 29,8 bilhões em 2006 para US$
48,7 bilhões em 2011. Em 2014, porém, esse resultado já havia involuído para
US$ 63 bilhões de déficit. Em 2020, o resultado negativo foi de US$ 35,3
bilhões.
Agora
um dado entristecedor, levantado e checado pelo economista Robinson Moraes, do
Valor Data (ver gráfico). No
fim dos anos 1970, produção e exportação de manufaturados brasileiros eram
próximas ou superiores às de concorrentes asiáticos. Em 1980, o Brasil exportou
US$ 9,028 bilhões em manufaturados, mais que a China, que vendeu US$ 8,712
bilhões. Hoje, a distância entre os dois países é estratosférica. O Brasil
exportou, em 2020, US$ 60,7 bilhões em manufaturados, e a China, US$ 2,47
trilhões.
Belluzzo
observa que o Brasil perdeu a corrida para a China por mérito do “adversário”,
mas também por fatores internos, como valorização cambial, “reprimarização” da
pauta de exportação, bloqueios à diversificação da estrutura industrial e
permanência de uma organização empresarial defensiva e frágil.
O
grave da situação atual, segundo ele, é que essa fragilização industrial ocorre
em um momento de intenso movimento de fusões e aquisições das cadeias
produtivas globais. Por isso, a política para a reindustrialização não pode
hoje reproduzir as orientações do período dito nacional-desenvolvimentista e,
muito menos, promover abertura comercial sem uma política industrial e
financeira ajustada aos tempos atuais. A literatura sobre processos de
industrialização, diz Belluzzo, mostra a importância da ação do Estado no
financiamento, na educação, na criação de sistemas de inovação e nas políticas
comerciais. Essa foi a experiência de Alemanha, Japão, Coreia do Sul, China e
EUA.
A
manutenção do câmbio real competitivo é condição necessária, mas não
suficiente. Precisa ser complementada por ações governamentais, como a escolha
das cadeias prioritárias e a adoção de parcerias público-privadas. O salto
tecnológico e de escala da indústria brasileira não vai ocorrer sem políticas
que estimulem o mercado de capitais. A experiência histórica demonstra que isso
exige a constituição de bancos universais de grande porte, regulados e
supervisionados, capazes de desenvolver instrumentos financeiros para crédito
de longo prazo.
Os
sistemas financeiros que ajudaram a erguer os países asiáticos eram
relativamente “primitivos” e especializados em dar crédito subsidiado e/ou
barato a empresas e setores “escolhidos” como prioritários pelas políticas
industriais. O circuito virtuoso ia do financiamento para o investimento, do
investimento para a produtividade, da produtividade para exportações, daí para
os lucros e dos lucros para a liquidação da dívida.
Políticas equivocadas
José
Luís Oreiro, professor da UnB, considera que a reindustrialização exige o
abandono de algumas políticas equivocadas [dogmas, acrescenta o articulista],
como o desmonte do BNDES.
A
questão da competitividade já está hoje mais ou menos resolvida com a
desvalorização do real, mas, segundo Oreiro, há dois desafios. O primeiro é a
recuperação da demanda, porque a renda caiu para níveis de 2013 e existe enorme
capacidade ociosa. O segundo, a retomada de investimentos em máquinas e
equipamentos, porque a indústria deixou de investir nesses anos de crise e
ficou muito defasada tecnologicamente.
É necessário e honesto lembrar também que a indústria sofreu um baque com a Operação Lava-Jato. O combate à corrupção era necessário, mas as punições deveriam atingir mais as pessoas e menos as empresas. Em 1945, após a rendição japonesa, o general Douglas MacArthur chamou o imperador Hirohito para conversar no QG americano. E o imperador, envergonhado, fez apenas um pedido: “General, peço que qualquer punição seja a mim, não ao Japão”.
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