Pouco
há de mais perigoso hoje no Brasil do que a influência-infiltração bolsonarista
nas forças de segurança pública país adentro. Trata-se mesmo de um programa de
ocupação ideológica, desde as mais baixas patentes, das corporações armadas.
Milícias (também) surgem assim, nas fissuras da hierarquia desafiada, nas
brechas em que se insinuam os atrativos do poder paralelo. Que o leitor se
lembre do movimento de amotinados no Ceará, de fevereiro de 2020, em que fora
possível identificar a presença de agentes do bolsonarismo.
Um
ano depois, volto a este tema, a corrupção ideológica das polícias, a partir do
ocorrido na Bahia, no último domingo: um ato de terrorismo doméstico promovido
por um lobo solitário, em cuja mente o apito soprado desde o Planalto entrou.
Refiro-me — chamando a coisa pelo que é — ao caso do soldado Wesley; o policial
militar, afinal terrorista, que, em maior ou menor surto, depois de apregoar
palavras de ordem e atirar a esmo, disparou contra colegas de farda.
Este é, aliás, um dos fatos do episódio — um fato, apesar da poderosa campanha de distorção bolsonarista: o sujeito disparou contra pares, somente em resposta a que seria baleado. Atirou; veio a reação. Mesmo assim, apesar das imagens incontroversas, o bolsonarismo conseguiu plantar sua guerrilha de versões, de que um soldado Wesley romantizado emerge como mártir em defesa da liberdade. Coisa de profissional.
O
policial disparou contra companheiros; mas sobretudo fez disparar o arsenal de
extremismos que instiga mais um golpe (de amotinados) contra o equilíbrio
republicano.
A
propósito, assim escreveu a deputada federal Bia Kicis, presidente da Comissão
de Constituição e Justiça: “Soldado da PM da Bahia abatido por seus
companheiros. Morreu porque se recusou a prender trabalhadores. Disse não às
ordens ilegais do governador Rui Costa. Esse soldado é um herói. Agora a PM da
Bahia parou. Chega de cumprir ordem ilegal”. Publicou isso — esse estímulo
criminoso ao motim — numa rede social, deixou que a grave pregação circulasse
longamente no zap-profundo bolsonarista e, então, apagou o texto. Padrão. Mas o
que difundiu é delito tipificado: propaganda de processos violentos ou ilegais
para alteração da ordem política ou social; incitação à animosidade entre as
Forças Armadas e as instituições civis.
Felipe
Pedri, secretário de Comunicação Institucional do governo federal, também deu —
antes de igualmente apagá-la — sua assistência à mitificação do terrorista:
“Lúcido, o PM Wesley perdeu a vida mostrando a loucura [em] que se encontra uma
sociedade que abandonou seus princípios mais básicos de convivência em nome de
uma suposta segurança sanitária”.
Lúcidos,
Kicis e Pedri basearam suas deformações num outro fato: antes de atirar nos
policiais, o soldado gritou — o próprio trampolim para a instrumentalização
política de sua morte — que não deixaria que violassem a dignidade e a honra do
trabalhador; uma explícita manifestação de insurgência contra as medidas
restritivas de circulação baixadas pelo governador baiano. Pronto. Estavam
dadas as condições — pelo próprio PM Wesley — para que seu cadáver fosse
ideologicamente manipulado.
Há
duas semanas, escrevi sobre o movimento pendular que caracteriza o
comportamento de Bolsonaro e pauta seus difusores. Se, de um lado, o mundo real
se impõe, no caso para o cavalo de pau que, de súbito, transformaria o
presidente em velho defensor da vacinação em massa; de outro, a esse gesto de
submissão à realidade corresponderá, obrigatoriamente, o acirramento, a
radicalização, da guerra fantasiosa contra os tiranos governadores. A morte do
soldado Wesley, o herói, servindo de banquete para alimentar a base de apoio
fundamental do bolsonarismo.
A
turma foi com tudo; para forjar o mártir — acima de tudo uma escada à
materialização da campanha por desobediência que tem origem no presidente da
República. Ou alguém acreditava que o estímulo de Bolsonaro à resistência
contra medidas restritivas legais determinadas por governadores e prefeitos se
restringisse a civis? Claro que não. Lembre que o presidente já relacionou seus
decretos armamentistas ao direito de o cidadão se defender do lockdown
imaginário, supressor da liberdade de ir e vir. Lembre que o “meu Exército” —
já armado — nunca servirá à opressão do povo. Está tudo aí, dado; apito
soprado. Lembre também que o bolsonarismo tem um histórico de associação a motins
policiais; e há mesmo uma recorrência: tanto Ceará quanto Bahia são comandados
por petistas.
O
soldado Wesley ainda não abrira fogo contra colegas, e o notório bolsonarista
sargento Prisco — um agitador de insurreições fardadas, deputado estadual baiano
expulso da PM — já se valia do ato terrorista para convocar levantes. O soldado
ainda não morrera, e já se concentravam dezenas de supostos agentes de
segurança — ameaçando motim — defronte ao hospital; isso enquanto, no
zap-profundo, circulavam centenas de mensagens mentirosas sobre como o policial
havia morrido por se recusar a cumprir ordens de um ditador. Mensagens como as
de Kicis e Pedri.
Mirava-se — mira-se, com golpismo — o governador; mas, para muito além dele, a própria ordem política. Vai piorar.
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