terça-feira, 30 de março de 2021

Bernard Appy* - Uma decisão preocupante

- O Estado de S. Paulo

 A decisão do Congresso Nacional, na semana passada, de aprovar a complementação de voto do relator do Orçamento, reduzindo a projeção de despesas obrigatórias para a inclusão de novas despesas discricionárias, é bastante preocupante. O problema não está apenas nos efeitos fiscais da medida, que, se não for revertida, pode exigir um nível insustentável de contingenciamento de despesas essenciais de custeio, resultando numa paralisação (shutdown) do governo. O principal problema está na forma escolhida para abrir espaço para a inclusão de novas despesas no Orçamento e, principalmente, na notícia de que esse procedimento teria tido apoio de parte da equipe governamental.

Pode-se questionar se as regras fiscais do Brasil são as ideais. Eu mesmo fiz isso em meu último artigo, publicado há duas semanas neste espaço. Mas, uma vez que as regras existem, é essencial que sejam cumpridas, sob pena de desmoralização de todo o arcabouço fiscal do País.

Obviamente, sempre haverá um incentivo para o governo ou o Congresso buscarem formas de driblar as regras fiscais para acomodar pressões por mais gastos. Em alguns casos, isso é possível por conta de falhas no desenho das regras fiscais, que permitem múltiplas interpretações. No passado, já foi mais fácil flexibilizar as regras fiscais (como a meta de resultado primário) via interpretações criativas, mas esse tipo de procedimento está cada vez mais difícil e perigoso – por conta da atuação dos órgãos de controle e do risco de caracterização do descumprimento das regras fiscais como crime de responsabilidade.

De todas as regras fiscais em vigor no Brasil, aquela que menos dá margem para divergências de interpretação é o teto dos gastos, introduzido pela Emenda Constitucional 95. A regra do teto estabelece de forma clara limites para o nível de despesas primárias da União (tanto na elaboração do Orçamento quanto na execução), explicitando de forma também muito clara as despesas que não integram o teto, como as transferências constitucionais para Estados e municípios. Isso não quer dizer que não seja possível encontrar interpretações que permitam driblar o teto.

Uma delas, aliás, foi aventada nas próprias mudanças recentes no Orçamento, que é a “transformação” de despesas (no caso, o pagamento pelo INSS do auxílio-doença) em redução de receita (o desconto, do montante devido de tributos, do auxílio-doença pago pela empresa). Uma regra fiscal realmente bem desenhada deve alcançar não apenas os gastos orçamentários, como também os gastos tributários (benefícios fiscais).

Como a abertura de espaço fiscal via conversão de despesas em renúncias tributárias não foi suficiente para acomodar a expansão pretendida de gastos no Orçamento de 2021, apelou-se para um expediente muito mais perigoso, que é a redução da estimativa de despesas obrigatórias, sem qualquer base técnica. Se é possível reestimar, indiscriminadamente, o nível de despesas obrigatórias, isso significa que não há qualquer regra fiscal que coordene a elaboração do Orçamento. Seguem havendo regras para a execução dos gastos, mas

Se as regras fiscais existem, elas devem ser cumpridas, sob pena de desmoralização do arcabouço fiscal do País

essas podem exigir um contingenciamento irracional de despesas essenciais de custeio, tornando disfuncional a operação do governo.

Espera-se que essa decisão equivocada seja revista, se possível por meio de um acordo político, nas próximas semanas. Mas também é importante que os órgãos de controle e o Judiciário se posicionem para impedir o recurso a esse tipo de procedimento no futuro.

Por fim, vale deixar claro que as projeções de despesas obrigatórias pelo Executivo podem não ser perfeitas. Mas sua revisão sumária pelo Legislativo não é a forma de tratar do problema. Como o Executivo é obrigado a revisar bimestralmente as estimativas de receitas e despesas para o ano, uma eventual abertura de espaço fiscal via redução da projeção de despesas obrigatórias pode, e deve, estar sujeita a uma alocação em prioridades definidas pelo Congresso Nacional.

*Diretor do Centro de Cidadania Fiscal

 

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