Ainda
estamos na 1ª onda de absurdos ligados à vacinação
Enquanto ainda acompanhávamos os até então chocantes números da pandemia na Itália, nos primeiros dias do ano passado, já era possível vislumbrar os desdobramentos da peste em um país gigante, fragmentado, desigual, patrimonialista e corrupto.
Acontecimentos
como uma epidemia de tal magnitude costumam pôr à prova a capacidade de uma
nação agir, enfim, como sociedade. O que se espera em tal cenário são
demonstrações mais claras de espírito coletivo, colaboração e empatia,
qualidades que o Brasil possivelmente não colocaria com nenhum destaque em seu
currículo. Isso sem falar no “fator” Bolsonaro.
Vieram
a “gripezinha”, o “e daí?”, as festas clandestinas e - por que não? - as festas
não clandestinas. Mas foi com a chegada das vacinas contra a covid-19 que o
Brasil mostrou a sua face mais autêntica.
Alguns casos de fraudes na vacinação, é verdade, já haviam aparecido mundo afora. Em dezembro, veio a público a informação de que o entorno do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, havia sido imunizado antes mesmo de as vacinas chegarem ao país e serem aprovadas pelas autoridades sanitárias locais.
Na
virada do ano, o ministro da Defesa do país asiático, Delfin Lorenzana,
reconheceu que os agentes de segurança de Duterte tinham recebido doses de
vacina contrabandeada. De acordo com ele, a manobra teria sido justificada pela
necessidade de se proteger a saúde do presidente.
Duterte,
que costuma aparecer ao lado de Jair Bolsonaro nos rankings da extrema-direta
global, também demonstra grande apreço pelas forças de segurança, especialmente
aquelas diretamente ligadas a ele.
Por
aqui, também tivemos confissões. O ex-presidente da Confederação Nacional do
Transporte (CNT), Clésio Andrade, admitiu à revista Piauí que recebeu uma dose
da vacina da Pfizer, generosamente doada por empresários que haviam comprado o
imunizante americano sabe-se lá onde.
Andrade
- um habitué de escândalos bem brasileiros - teria participado de um “open bar”
da Pfizer, oferecido a poucos e bons belo-horizontinos, ao velho estilo rei do
camarote. Após revelar a história, o empresário recuou, disse que não disse o
que disse e a história ficou a cargo da Polícia Federal.
Antes
do episódio, as famílias dos 24 mil mineiros mortos até agora pela covid-19 já
conviviam com a CPI dos Fura-Fila, instalada na Assembleia Legislativa para
apurar o desvio de vacinas por autoridades do governo local.
Também
já estavam na praça outros produtos típicos da nossa terra, como as imensas
filas de idosos que, sob sol inclemente da Baixada Fluminense, aguardavam por
vacinas que não eram suficientes para todos ali. Ou os casos das seringas que
não eram acionadas após serem introduzidas no braço de cidadãos octogenários.
Como
esquecer, ainda, das ações judiciais impetradas por entidades de classe em
busca de “prioridade” na fila da vacinação? Insumo farmacêutico pouco, minha
seringa primeiro. Quando os casos vêm a público, ninguém aparece para embalar a
criança.
Receio,
contudo, que ainda estejamos vivendo apenas a primeira onda de absurdos
relacionados à vacinação. O Ministério Público já começou a receber denúncias
de prefeitos que estariam reservando cotas de imunizantes para mimar amigos de
tempos eleitorais.
Não
é difícil imaginar as centenas de “Odoricos” que temos espalhados pelas cinco
regiões presenteando assessores, familiares e aliados com as tão desejadas
doses.
A
versão original do Programa Nacional de Imunizações fez os privilegiados
brasileiros lembrarem que fazem parte de um coletivo - o que é raro. Turbinado
pelo desdém e a incompetência do governo federal em adquirir vacinas, o
sentimento de impotência não tardou em apelar ao jeitinho.
Alguns
dirão que a solução deveria passar pela entrada do setor privado. A pressão
veio, cresceu e no último dia 10 o Congresso aprovou o sinal verde para a
importação de vacinas pelas empresas. O debate parlamentar, contudo, resultou
na exigência de que os imunizantes fossem integralmente entregues ao Sistema
Único de Saúde.
Empresários
torceram o nariz, mas, a princípio, não reclamaram publicamente. Até que, na
semana passada, o bilionário bolsonarista Carlos Wizard desabafou. “Não consigo
ver muita recíproca nessa questão. Eu já estou sendo solidário com o governo:
ele está deixando de ter a logística, a mão de obra, a negociação e o custo
dessa aplicação”, declarou.
A
um primeiro olhar, a entrada do setor privado na imunização parece bastante
racional. As empresas compram as doses, vacinam funcionários e familiares e dão
uma folga maior para o SUS.
Desconfio
- não sei o motivo - que a imunização em massa das classes mais altas aliviaria
outra coisa: a pressão da opinião pública pela universalização da vacina. No
mesmo final de semana, o “trainee’ da multinacional estaria protegido para
retomar a vida noturna, enquanto o vendedor de picolé de 60 anos ainda teria
que se colocar em risco para trabalhar.
Teremos
em breve um bom laboratório para observar o desempenho da vacinação privada em
um país em desenvolvimento. O Quênia, com mais de 50 milhões de habitantes,
decidiu liberar a venda de vacinas pelos hospitais privados sem limite de
preço. Acreditam que as leis do mercado vão funcionar no país, que só recebeu 1
milhão de doses por meio da OMS.
Há
expectativa de que alguns países, sobretudo na África, só conseguirão imunizar
suas populações em 2024. Nações ricas ainda resistem em doar sobras ou mesmo
quebrar patentes para ajudar a crise.
No
Brasil sem UTI, sem oxigênio e sem médicos - e com 2% da população vacinada em
quase três meses -, integrantes do governo sonham com o início da produção
local e já falam em “imunizar toda a América do Sul”. Lembram Paulo Guedes e o
seu insistente “vai decolar”.
De
racional mesmo tivemos a carta assinada por economistas e empresários, pedindo
ordem e vacina. Apesar de tardia, a mobilização da sociedade civil me remete a
Tim Maia, em Imunização Racional (1975).
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