terça-feira, 30 de março de 2021

Murillo Camarotto - Imunização racional

- Valor Econômico

Ainda estamos na 1ª onda de absurdos ligados à vacinação

Enquanto ainda acompanhávamos os até então chocantes números da pandemia na Itália, nos primeiros dias do ano passado, já era possível vislumbrar os desdobramentos da peste em um país gigante, fragmentado, desigual, patrimonialista e corrupto.

Acontecimentos como uma epidemia de tal magnitude costumam pôr à prova a capacidade de uma nação agir, enfim, como sociedade. O que se espera em tal cenário são demonstrações mais claras de espírito coletivo, colaboração e empatia, qualidades que o Brasil possivelmente não colocaria com nenhum destaque em seu currículo. Isso sem falar no “fator” Bolsonaro.

Vieram a “gripezinha”, o “e daí?”, as festas clandestinas e - por que não? - as festas não clandestinas. Mas foi com a chegada das vacinas contra a covid-19 que o Brasil mostrou a sua face mais autêntica.

Alguns casos de fraudes na vacinação, é verdade, já haviam aparecido mundo afora. Em dezembro, veio a público a informação de que o entorno do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, havia sido imunizado antes mesmo de as vacinas chegarem ao país e serem aprovadas pelas autoridades sanitárias locais.

Na virada do ano, o ministro da Defesa do país asiático, Delfin Lorenzana, reconheceu que os agentes de segurança de Duterte tinham recebido doses de vacina contrabandeada. De acordo com ele, a manobra teria sido justificada pela necessidade de se proteger a saúde do presidente.

Duterte, que costuma aparecer ao lado de Jair Bolsonaro nos rankings da extrema-direta global, também demonstra grande apreço pelas forças de segurança, especialmente aquelas diretamente ligadas a ele.

Por aqui, também tivemos confissões. O ex-presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), Clésio Andrade, admitiu à revista Piauí que recebeu uma dose da vacina da Pfizer, generosamente doada por empresários que haviam comprado o imunizante americano sabe-se lá onde.

Andrade - um habitué de escândalos bem brasileiros - teria participado de um “open bar” da Pfizer, oferecido a poucos e bons belo-horizontinos, ao velho estilo rei do camarote. Após revelar a história, o empresário recuou, disse que não disse o que disse e a história ficou a cargo da Polícia Federal.

Antes do episódio, as famílias dos 24 mil mineiros mortos até agora pela covid-19 já conviviam com a CPI dos Fura-Fila, instalada na Assembleia Legislativa para apurar o desvio de vacinas por autoridades do governo local.

Também já estavam na praça outros produtos típicos da nossa terra, como as imensas filas de idosos que, sob sol inclemente da Baixada Fluminense, aguardavam por vacinas que não eram suficientes para todos ali. Ou os casos das seringas que não eram acionadas após serem introduzidas no braço de cidadãos octogenários.

Como esquecer, ainda, das ações judiciais impetradas por entidades de classe em busca de “prioridade” na fila da vacinação? Insumo farmacêutico pouco, minha seringa primeiro. Quando os casos vêm a público, ninguém aparece para embalar a criança.

Receio, contudo, que ainda estejamos vivendo apenas a primeira onda de absurdos relacionados à vacinação. O Ministério Público já começou a receber denúncias de prefeitos que estariam reservando cotas de imunizantes para mimar amigos de tempos eleitorais.

Não é difícil imaginar as centenas de “Odoricos” que temos espalhados pelas cinco regiões presenteando assessores, familiares e aliados com as tão desejadas doses.

A versão original do Programa Nacional de Imunizações fez os privilegiados brasileiros lembrarem que fazem parte de um coletivo - o que é raro. Turbinado pelo desdém e a incompetência do governo federal em adquirir vacinas, o sentimento de impotência não tardou em apelar ao jeitinho.

Alguns dirão que a solução deveria passar pela entrada do setor privado. A pressão veio, cresceu e no último dia 10 o Congresso aprovou o sinal verde para a importação de vacinas pelas empresas. O debate parlamentar, contudo, resultou na exigência de que os imunizantes fossem integralmente entregues ao Sistema Único de Saúde.

Empresários torceram o nariz, mas, a princípio, não reclamaram publicamente. Até que, na semana passada, o bilionário bolsonarista Carlos Wizard desabafou. “Não consigo ver muita recíproca nessa questão. Eu já estou sendo solidário com o governo: ele está deixando de ter a logística, a mão de obra, a negociação e o custo dessa aplicação”, declarou.

A um primeiro olhar, a entrada do setor privado na imunização parece bastante racional. As empresas compram as doses, vacinam funcionários e familiares e dão uma folga maior para o SUS.

Desconfio - não sei o motivo - que a imunização em massa das classes mais altas aliviaria outra coisa: a pressão da opinião pública pela universalização da vacina. No mesmo final de semana, o “trainee’ da multinacional estaria protegido para retomar a vida noturna, enquanto o vendedor de picolé de 60 anos ainda teria que se colocar em risco para trabalhar.

Teremos em breve um bom laboratório para observar o desempenho da vacinação privada em um país em desenvolvimento. O Quênia, com mais de 50 milhões de habitantes, decidiu liberar a venda de vacinas pelos hospitais privados sem limite de preço. Acreditam que as leis do mercado vão funcionar no país, que só recebeu 1 milhão de doses por meio da OMS.

Há expectativa de que alguns países, sobretudo na África, só conseguirão imunizar suas populações em 2024. Nações ricas ainda resistem em doar sobras ou mesmo quebrar patentes para ajudar a crise.

No Brasil sem UTI, sem oxigênio e sem médicos - e com 2% da população vacinada em quase três meses -, integrantes do governo sonham com o início da produção local e já falam em “imunizar toda a América do Sul”. Lembram Paulo Guedes e o seu insistente “vai decolar”.

De racional mesmo tivemos a carta assinada por economistas e empresários, pedindo ordem e vacina. Apesar de tardia, a mobilização da sociedade civil me remete a Tim Maia, em Imunização Racional (1975).

“Que beleza é conhecer
O desencanto
E ver tudo bem mais claro
No escuro”.

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