terça-feira, 6 de abril de 2021

Gabriel Galípolo* e Luiz G. Belluzzo** - A outra coisa é a mesma coisa

- Valor Econômico

Economia sucumbe, mas os juros sobem para conter os reflexos da retomada da atividade das economias centrais

Uma das cenas mais fantásticas do cinema ocorre em 2001 - Uma Odisseia no Espaço, quando um dos primatas olha para o osso e tem um estranhamento com seu conceito inicial. Pelas expressões e reações percebemos o desenvolvimento de um pensamento crítico, negando a forma como naturalmente o osso se apresentava, até compreender que ele também contém a possibilidade de ser uma ferramenta para caçar ou se defender.

Muitas coisas são, em potência, uma coisa e outra coisa. Um bem contém a possibilidade de ser utilizado ou trocado. Se utilizado, é renunciado a apropriação do seu valor de troca. Se trocada, seu uso é alienado para quem a adquiriu. Uma possibilidade nega e rejeita a outra, mas ambas convivem em potência na mercadoria.

A moeda, além de unidade de conta, é meio de pagamento e reserva de valor. O seu emprego como meio de pagamento, na aquisição de bens e serviços, implica a negação da sua conservação como reserva de valor, enquanto preservação da riqueza ao longo do tempo na forma líquida. O raciocínio inverso também é verdadeiro, quem prefere a liquidez abdica ao consumo.

Por essa razão a inflação não é função da quantidade de moeda. Para o bem e para o mal, a quantidade de moeda disponível não é capaz de gerar poder aquisitivo, demanda e inflação. Configura um exemplo radical, a política de flexibilização quantitativa (QE), inaugurada como combate a crise de 2008 e aprofundada como resposta aos efeitos econômicos da covid-19.

A crise tem o poder de empenhar coletivamente as decisões na venda dos diversos ativos financeiros que apresentam sua liquidez ameaçada. O comportamento desencadeia a realização do próprio efeito temido, pois o aumento na oferta desses ativos, que é também uma elevação na demanda por moeda, provoca a perda de valor do primeiro ante a segunda, deprimindo renda e riqueza, inserindo cada vez mais ativos nesta temerária condição.

Como resposta, bancos centrais das principais economias passaram a adquirir ativos financeiros, buscando sustentar seus preços e ao mesmo tempo abastecer os mercados de moeda. Entre 2008 e 2020 o balanço do Fed saltou de menos de US$ 1 trilhão para mais US$ 8 trilhões em ativos adquiridos para injetar liquidez no mercado.

Durante esse período o Federal Reserve lutou muitas vezes não para conter, mas acelerar uma inflação que teimava em escorregar para baixo da meta. A liquidez permaneceu empoçada em ativos líquidos no mercado financeiro ao invés de se inserir no fluxo capaz de gerar renda.

Após anos de dissonância entre a evolução dos preços dos ativos financeiros e a atividade econômica, as principais economias do mundo anunciam medidas para induzir diretamente a ampliação do poder aquisitivo (meio de pagamento) e retirar os PIBs da letargia.

A Europa anunciou o Next Generation EU, que promete estímulo de € 1,824 trilhão para acelerar a recuperação e ampliar a resiliência dos sistemas produtivos. Mais de 30% dos recursos estão associados a agenda ambiental e climática e outros 20% à transição digital.

O recém-eleito presidente dos Estados Unidos apresentou um programa de estímulo econômico de US$ 1,9 trilhão, que inclui cheques de US$ 1,4 mil por pessoa para quem ganha menos de US$ 75 mil por ano e casais casados com renda de até US$ 150 mil por ano. Pouco depois anunciou um plano de investimento em infraestrutura de US$ 2 trilhões.

Economistas, alguns há mais de uma década, outros recém-convertidos após a visão da forca, alertavam que apenas os juros negativos e a inundação dos mercados financeiros eram insuficientes para recuperar a economia, convocando a colaboração da política fiscal. O mercado financeiro parece concordar, pois reagiu ao anúncio do estímulo fiscal elevando as taxas de juros de longo prazo. Uma economia em crescimento, avisam os mercados, não permitirá a manutenção de uma política monetária tão frouxa ou expansionista no futuro.

Não é difícil deduzir as consequências para os mercados emergentes. A alta dos prêmios oferecidos pelo ativo de última instância do sistema, leia-se títulos públicos americanos, promove, por meio da arbitragem, movimento proporcional nos ativos menos líquidos e, portanto, com maior risco. Assim, caem os preços dos títulos públicos brasileiros de longo prazo, provocando elevação no seu prêmio (juros) e desvalorizando a moeda doméstica frente ao dólar, preços identificados com a percepção de risco país. Há, portanto, uma armadilha na aparente relação causal unidirecional entre risco país e variáveis como câmbio e juros (prêmio).

O cenário de desvalorização do real, com reflexos nos preços, e maior inclinação da curva de juros, aumentou a pressão sobre o Copom para subir a taxa básica de juros (Selic), apesar da taxa de desemprego acima de 13% e uma multidão de empresas respirando por aparelhos, sufocadas pelos estragos da pandemia em uma economia que já carregava problemas crônicos por muitos anos.

De forma didática, André Lara Resende, em artigo publicado no dia 1/4/2021 neste mesmo Valor, demoliu a racionalidade por trás do receituário de elevação de juros no presente cenário e apresentou políticas alternativas eficazes.

Baseado nas mecânicas binárias do tipo “se isto, então aquilo”, que infestam os modelos ensinados nas aulas de macroeconomia, o Brasil se candidata aos livros textos de história econômica como exemplo de “Péssimo de Pareto”. A economia sucumbe, mas os juros sobem para conter os reflexos da retomada da atividade das economias centrais.

Modelos econômicos preconizam o manejo da taxa de juros para controle dos preços ante a impossibilidade temporária de ampliação da oferta para atender a demanda excedente. O problema atual é justamente o oposto: a deterioração na capacidade de oferta pela ausência de demanda. Variáveis cujo comportamento não costuma obedecer a comportada e desejada fragmentação teórica. Retornamos ao ponto inicial. O pensamento econômico se vê assombrado, por todos os lados, pelo fantasma da dialética: “uma coisa é uma coisa a outra coisa é a mesma coisa”.

*Gabriel Galípolo é presidente do Banco Fator, sócio-diretor da Galípolo Consultoria e mestre em economia (PUC-SP).

**Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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