Culto às armas de fogo, elogio explícito à tortura; é esse o tipo de moralidade que se depreende dos evangelhos?
O
ministro Kassio
Nunes Marques parece querer agradar os eleitores do presidente
que o indicou ao STF. Só isso explica sua decisão irresponsável de
permitir, mesmo contra a vontade de prefeitos e governadores, celebrações
religiosas coletivas —eventos com alta probabilidade de contágio— num
momento de alta da pandemia, em que morrem mais de 3.000 pessoas diariamente.
Ainda pior que a irresponsabilidade do ministro, contudo, é constatar que algumas lideranças religiosas de peso —como o pastor Silas Malafaia— celebraram a decisão. Fico em dúvida se sua religião ainda é o cristianismo, ou se ele já o trocou pelo bolsonarismo.
Um
ditado religioso diz que se uma pessoa deixa de acreditar em Deus, ela passará
a acreditar em qualquer coisa; alguma superstição ou ideologia ou mesmo seu
próprio ego virá preencher o vazio. O que vemos à nossa volta, infelizmente, é
que são justamente aquelas pessoas que mais se dizem religiosas —as que mais
ostentam sua fé em Jesus— que mais idolatram divindades humanas como Bolsonaro.
Com
efeito, nunca tivemos um movimento político de grande porte tão ostensivamente
cristão quanto o bolsonarismo: ainda pré-candidato, em 2016, Bolsonaro
se fez batizar no rio Jordão pelo Pastor Everaldo.
Seu
slogan coloca Deus “acima de todos”, adora citar a Bíblia (embora com uma
seleção bem minguada de versículos), ora com estardalhaço junto a pastores
famosos, convoca o povo a orações e jejuns, ostenta imagens católicas. Seus
militantes se identificam como cruzados em defesa da fé.
Ao
mesmo tempo, nunca tivemos um movimento político tão oposto aos valores
cristãos quanto o bolsonarismo.
Culto
à violência e às armas de fogo, desejo de matar supostos “marginais” e
opositores políticos, elogio explícito à tortura e à execução de inimigos;
defesa da exploração econômica e ambiental irrestrita; a ambição individual
acima de tudo; campanhas maciças de desinformação e calúnia nas redes sociais e
no WhatsApp; militantes completamente cegados pelo ódio e pela ignorância.
É
esse o tipo de moralidade que se depreende dos evangelhos?
Há
uma diferença entre ser um fiel sincero de uma religião e tê-la apenas como
identidade cultural. Para o fiel sincero, sua fé lhe fornece valores e
critérios pelos quais ele julga a si mesmo e ao mundo. A Bíblia, os
ensinamentos de sua igreja, as revelações de espíritos. Seja sua fé qual for,
existirá uma grande lacuna entre o ideal de virtude que ela prega e a forma
como os homens de fato se comportam. Somos imperfeitos.
Para
o cristianismo ocidental, toda pessoa já nasce com a chaga do pecado original.
Sendo assim, todo líder político, que é nada mais do que um ser humano, também
será julgado pela mesma métrica, e o apoio a ele será sempre condicional e
relativo. A principal guerra do fiel é interna: a busca por melhorar e por
vencer o mal que ele percebe dentro de si.
Já
o cristianismo como identidade cultural é um agregado de símbolos que seus
adeptos usam para se reconhecer mutuamente como pertencentes a uma mesma tribo,
a tribo dos cristãos, dos conservadores, dos “ocidentais”.
Ao
mesmo tempo, marca sua diferença com os “outros”: esquerdistas, progressistas,
socialistas, pagãos (ou seja, seguidores de outras religiões), muçulmanos. Sua
guerra é exterior. Esse, sim, é um prato cheio para os políticos mais
inescrupulosos manipularem as massas.
E
quanto mais eles chacoalham seus símbolos e palavras de ordem, mais podemos ter
certeza de que são apenas armas numa guerra pelo poder. A fé sincera não
precisa ser gritada nos alto-falantes.
Pastores,
padres, rabinos, pais e mães de santo; temos muitas lideranças religiosas dando
exemplo de amor ao próximo e responsabilidade social, evitando as aglomerações.
Outros, movidos pelo interesse político e econômico, aproveitam a pandemia para
mais uma “guerra cultural”. A religião não é a inimiga aqui, e sim a falsa
religião da idolatria política.
*Economista, mestre em filosofia pela USP.
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