terça-feira, 6 de abril de 2021

Carlos Andreazza - A falsa crise e a crise permanente

- O Globo

Militares — ao menos os de alta patente — não respaldam o golpismo de Jair Bolsonaro. Ok. Vá lá. Respaldam, porém, o governo por meio do qual Bolsonaro exercita seu golpismo. Isso é um fato. Serei generoso a respeito. Admitamos que tenha havido, entre os generais que embarcaram na canoa do capitão, os que desconhecessem a figura. (Falei que seria generoso.) Passados dois anos, contudo: se ficam, endossam. Se ficam, ante tudo quanto há, acumpliciam-se. Se ficam e se ficaram, os que saíram anteontem, de súbito democratas: cúmplices.

O governo é militar — e já vai tarde o tempo, um Pazuello de distância, em que se poderia reverter essa associação. É orgânica, embora tenha como marca a produção de cloroquina em laboratórios do Exército. São cerca de 6 mil os militares (quase a metade, da ativa) incorporados à administração federal, em ministérios, inclusive os palacianos, e estatais. E é com assento neste corpo, na projeção de força que esta estrutura musculosa insinua, que o presidente da República fala — e continua a falar —em “meu Exército”.

O governo é militar — e autocrático. O presidente não se tornou este populista-autoritário na semana passada; e foi por ser o que é que atraiu tantos generais-helenos. A dança das cadeiras se dá em torno — e em função — de Bolsonaro. Um general vai; outro vem. As Forças Armadas, o Exército acima de todas, permanecem.

Estão todos felizes nesta parceria; o que não exclui reacomodações eventuais.

Sim: houve tensão no processo que resultou na queda de Azevedo e Silva. Não ficou claro o que Bolsonaro lhe teria pedido que ainda não tivesse entregado; sendo o ex-ministro da Defesa aquele, e não posso crer que obrigado, que sobrevoara, com o presidente, em helicóptero militar, uma manifestação golpista, e que continuaria no cargo mesmo depois de o chefe haver discursado em ato antidemocrático defronte ao QG do Exército. O que mais queria Bolsonaro? O que mais quererá, que Azevedo e Silva não topou dar, e que Braga Netto — dedução lógica —toparia? (Sempre haverá quem tope, ou general Ramos não se teria transformado neste Carlos Marun fardado.)

Houve alguma tensão. Mas não a crise que se quis difundir — e que só faz o jogo do presidente. O que quer que tenha sido: nada que mudasse a relação de Bolsonaro com os militares. Nada nem sequer próximo de estremecer uma sociedade que — diga-se —tende a se aprofundar no novo arranjo. Ou, com Braga Netto na Defesa, teremos menos militares no governo? Ou, sob Braga Netto, não seria mais fácil esperar que esse número aumentasse?

Que crise será esta em que os partícipes todos engordam? Ora: só uma — um falso problema — que fosse forjada; e boa para todos os envolvidos.

O general demitido saiu plantando, com eficiência, que sua débâcle derivava de não ter aceitado pressão por apoio político — por mais apoio político, né? — das Forças Armadas ao governo. E, desse modo, sem maiores questionamentos, foi para casa beatificado, um guerreiro em defesa da democracia e das Armas como instituições de Estado; como se não tivesse assinado, nos 31 de março de 2019 e 2020, ordens do dia cujas exaltações ao golpe de 1964 foram mais intensas que a de 2021.

Virou herói. Contou sua história, não foi chamado a detalhá-la ao Senado e virou santo, assim como Bolsonaro virara defensor da vacinação em massa. E ficaram todos felizes: o democrata (desde a véspera) e o golpista (sem dentes para dar golpe); os perigos obscuros sugeridos por Azevedo e Silva alimentando o terrorismo — banguela — do presidente.

Era tudo de que Bolsonaro precisava. Uma crise artificial— conflito forjado — para demonstrar força, que não tem, num período em que vai obviamente isolado, desprovido de recursos políticos para robustecer o governo que não os oferecidos por Arthur Lira. Puro truque: fabricar um confronto para exibir quem manda, quem tem poder, enquanto, no mundo real, o Centrão derruba o ministro das Relações Exteriores, sequestra o Orçamento e chega ao Planalto tomando a articulação política.

Bolsonaro neste momento: um fraco, um sozinho, que tem os filhos como recursos humanos, e que estica a corda a cada vez que tem essa miséria exposta. Arma-se um perigoso ciclo de instabilidade, que aguça — aí, sim — a crise real. Uma crise permanente. Porque o fraco, naturalmente, mostra fraqueza —e essa fraqueza evidente faz com que o fraco, sendo ele Bolsonaro, precise mostrar força. Assim giramos... Azevedo e Silva serviu de escada para que o presidente desfilasse seu poder imaginário: aquele que demite os comandantes militares, que faz e acontece, sendo o mesmo que entrega latifúndios de seu governo em busca de sustentação e blindagem.

A questão é lógica: ou Bolsonaro é mito ou precisa receber Valdemar da Costa Neto no Planalto. Isso implica uma pane em sua base de apoio fundamental, em resposta a que, para agradá-la, tem de radicalizar. E então radicaliza, com nova rodada de ataques aos tiranos governadores e mais referências ao “meu Exército” (fantasia que Azevedo e Silva fez parecer real) — ataques, entretanto, que não serão chancelados pelo sócio (de capital crescente) Centrão. Eis o ciclo da desgraça, da progressiva corrosão republicana. A crise constante. O nosso buraco. Contratado um país que, estando paralisado, não terá como andar tão cedo.

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