Foram necessárias 300 mil mortes, para perceberem a necessidade de vacinar todos os brasileiros contra o coronavírus. Mas depois de dois séculos de independência, 130 anos de república, ainda não percebemos a necessidade de outras vacinas para construir uma nação eficiente, justa e sustentável. Ainda não se descobriu a necessidade de vacinar o Brasil contra suas doenças sociais e econômicas.
Vacinas estruturais que permitam superarmos a tragédia da pobreza que atinge quase metade de nossa população, parte dela em miséria extrema, sem água encanada, esgoto tratado, lixo recolhido, sem emprego ou salário, sem habitação, nem atendimento médico de qualidade, até mesmo sem comida suficiente. Uma vacina estrutural contra o abandono secular de milhões de brasileiros, grande parte crianças, sobrevivendo em condições abaixo do mínimo necessário para uma vida digna. Vacina também contra a vergonha da concentração de renda, que nos faz um dos cinco países com a maior desigualdade entre todos os outros duzentos. Sem essas vacinas, não podemos nos considerar uma República, nem mesmo uma nação.
Precisamos
de vacina contra a corrupção, tanto a explícita, no roubo do dinheiro público,
quanto as disfarçadas nos desperdícios, mordomias, privilégios; quanto as
disfarçadas na brutal corrupção das prioridades, embutidas a cada ano nos
orçamentos do setor público. Precisamos vacinar nossa economia contra a baixa
produtividade, baixa poupança, incapacidade de inovação e de competitividade.
Para isso, é necessária a vacina do Fator Confiança, que vem da estabilidade
monetária, da responsabilidade fiscal, da permanência das regras jurídicas.
Também vacina contra a degradação ambiental, o assassinato dos rios e a
devastação das florestas. A covid-19 asfixia cada brasileiro individualmente, a
degradação ambiental asfixia a base natural do país, o desperdício de recursos
fiscais asfixia a economia, e a desmoralização da política asfixia a
democracia. Precisamos vacinar o Brasil contra as asfixias ecológica, fiscal e
moral.
Precisamos
nos vacinar contra o obscurantismo e o negacionismo dos que refutam a ciência,
e dos que desprezam a importância da aritmética; os que não querem ver a
realidade e preferem acreditar que a natureza e seus recursos são ilimitados.
Vacina contra os populistas que sabem os limites desses recursos, mas enganam o
povo com o propósito de ganhar eleições. Também precisamos de vacina estrutural
contra a desenfreada violência que caracteriza nossas ruas, jogando a população
no medo e forçando a sociedade ao armamentismo que não trará paz, nem mesmo
segurança. Sobretudo, o Brasil precisa da vacina contra o terrível vírus da
falta de educação, que asfixia o pensamento, a inteligência, a mente do país e
causa doenças sociais e econômicas. A falta de qualidade educacional provoca o
atraso econômico; a desigualdade escolar provoca a injustiça e as doenças
sociais. A mãe de todas as vacinas consiste na implantação de estratégia que
instale um Sistema Nacional de Educação de Base com Qualidade para toda criança
brasileira: o governo federal adotar os sistemas municipais de educação de base
no ritmo compatível com a disponibilidade de recursos fiscais e humanos, e com
adesão voluntária dos municípios.
Provavelmente
pelo impacto imediato à vida, as 300 mil mortes despertaram para a necessidade
da vacina contra a covid-19, mas os impactos das doenças estruturais são
minimizados porque se prolongam ao longo de séculos, concentrados no presente
dos pobres e ameaçando o futuro do país. As vacinas estruturais não foram
tomadas porque suas doenças não são perceptíveis pelas elites, especialmente
políticas. Os impactos da covid são visíveis, mas a pobreza, a ineficiência, a
concentração, a injustiça e seus efeitos são sentidos apenas por uma parte da
população, e a insustentabilidade só afetará gerações futuras, que ainda não
votam. A dor e a asfixia da deseducação não é sentida nem mesmo por aqueles que
mais sofrem seus efeitos, sem perceberem que ela é a causa de grande parte dos
sofrimentos de que padecem. O Brasil já sabe o que perdeu por adiar a compra de
vacinas biológicas por alguns meses, e precisa entender o quanto perdemos por
adiar as vacinas estruturais há séculos.
Bendita descoberta da necessidade de vacina contra a covid-19. Esperemos que o Brasil desperte para a necessidade de vacinas estruturais, sem as quais voltaremos ao país de antes da epidemia: menos assustador, mas igualmente ineficiente, injusto, insustentável, inseguro.
*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Nenhum comentário:
Postar um comentário