Como
disse Camus, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O
problema é quando se trata do presidente da República
O
consagrado escritor francês Albert Camus foi um existencialista, para quem o
homem vive em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo
desconexo, ininteligível, guiado por religiões e ideologias políticas. Num de
seus ensaios filosóficos, Camus classifica Sísifo, um dos grandes personagens
da mitologia grega, como um herói absurdo. “Tanto por causa de suas paixões
como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão
pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo seu ser se empenha
em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta terra”,
resumiu.
Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalida- des. “Ou não somos livres, e o responsá- vel pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.
Àquela
época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a
guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça,
tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao
empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a
cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da
saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a
covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no
caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.
Como
disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do
irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente
Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus
aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para
evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil
mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos
epidemiológicos do mundo.
Houve
reação entre seus colegas do Supremo. Além das críticas públicas do decano
Marco Aurélio Mello, ontem, o ministro do STF Gilmar Mendes, ao negar uma
ação do PSD, manteve o decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB),
que restringiu as atividades religiosas de igrejas no estado. Contrariou a
decisão de Kassio Marques, que havia liberado celebrações presenciais em todo o
país. À tarde, o procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de
Bolsonaro e cotado para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que está
prestes a se aposentar, protocolou no Supremo um pedido para retirar de Gilmar
Mendes e transferir para Kassio Marques a ação do PSD contra a proibição de
cultos e missas coletivas em São Paulo, porque é relator de uma ação mais antiga:
a do PSD é de março deste ano.
O presidente do STF, ministro Luiz Fux, decidiu pôr o assunto em votação amanhã, na reunião plenária da Corte. A decisão de Kassio Marques, a pretexto de garantir a liberdade religiosa, está em contradição com a jurisprudência do Supremo, que atribuiu aos estados e municípios autoridade para fixar medidas restritivas de enfrentamento da pandemia, inclusi- ve, o fechamento de templos e igrejas.
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