Valor Econômico
Uma morte é uma tragédia, um milhão é uma
estatística
Em nota de pesar divulgada no sábado,
quando o Brasil atingiu a trágica marca de 500 mil mortes pela covid-19, a
cúpula da CPI da Covid assegurou que o castigo virá, e os responsáveis “serão
punidos exemplarmente”. Os senadores enfatizam que “crimes contra a humanidade,
os morticínios e os genocídios não se apagam, nem prescrevem”.
Foi uma manifestação contundente, que
coincidiu com a segunda edição dos protestos pelo “fora, Bolsonaro”, por mais
vacinas, e pela volta do auxílio emergencial de R$ 600. O fórum de
organizadores contabilizou 427 atos em 366 cidades, incluindo as 27 capitais.
Drones registraram imagens da Avenida Paulista, o farol da insatisfação
popular, com nove quarteirões tomados por uma multidão de descontentes.
A despeito do empenho dos dirigentes da
CPI, a imputação da culpa pelas mortes na pandemia, e consequente punição,
implica uma corrida de obstáculos. Após o relatório final propondo indiciamento
dos responsáveis, virão a pressão para que a Procuradoria-Geral da República
instaure inquéritos, o Poder Judiciário conduza ações penais em ritmo razoável,
respeitem-se o contraditório e a ampla defesa, até o julgamento final. O mais
provável, no curto prazo, é que o efetivo julgamento dos responsáveis somente
se materialize nas urnas.
Nesse cenário, os senadores deveriam dividir os esforços na busca pelas provas irrefutáveis, com a busca pela comoção social. A estatística impressiona, mas não emociona todos os brasileiros.
Uma parcela da sociedade, principalmente entre
apoiadores do governo, credita parte dos óbitos à fatalidade, ou à recusa do
paciente em utilizar medicamentos de eficácia não comprovada cientificamente, e
não à eventual imperícia do governo. Confrontado pela estatística, esse
segmento questiona: “E daí?”
Pesquisa Datafolha divulgada em maio
mostrou que a taxa dos brasileiros que acreditavam que a gestão da pandemia
estava fora de controle recuou de 79% em março, para 53%, num intervalo de dois
meses. O governo acredita que o avanço da vacinação no segundo semestre fará
esse índice regredir ainda mais. Segundo o mesmo levantamento, 82% dos
entrevistados avaliam que o Senado agiu corretamente ao instalar a CPI, mas 57%
acham que a investigação “acabará em pizza”.
Essa combinação de pragmatismo e ceticismo
detectada pelas pesquisas dialoga com uma frase normalmente atribuída a Josef
Stalin (1922-1953), secretário-geral do Partido Comunista: “Uma única morte é
uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”.
Não há registro confiável de que o ditador
soviético seja o autor, mas a frase é oportuna porque reflete a percepção de
que uma fração dos brasileiros começou a “normalizar” os óbitos decorrentes da
covid-19.
Se não é verdade que Stalin é o autor da
reflexão, é fato histórico que o dirigente soviético conviveu de perto com o
morticínio não apenas de opositores do regime, mas de populações inteiras.
Segundo historiadores, em nenhum momento ele se compadeceu ou pediu desculpas
pelas mortes.
Anne Applebaum, autora de “A Fome Vermelha
- A guerra de Stalin na Ucrânia”, afirma que Stalin jamais admitiu que qualquer
elemento importante de sua política - a coletivização das fazendas, a
expropriação de grãos, ou as revistas e buscas nas casas dos camponeses -
estivesse equivocado. Ao contrário, ele culpou as vítimas da fome pela falta de
alimentos.
Estimativas reportam pelo menos 4,5 milhões
de ucranianos mortos na grande fome de 1932 e 1933 - cerca de 13% da população
da ex-colônia soviética.
Segundo Applebaum - jornalista e
historiadora americana, que foi editora da “The Economist”, e colunista do
“Washington Post” - Stalin alimentava teorias da conspiração em sua
correspondência pessoal e nos debates no partido. Os mortos de fome não eram
inocentes, eram “traidores, sabotadores, e conspiravam para minar a revolução
proletária”.
O livro remete a documentos de arquivos
abertos somente no começo do século XXI para questionar, mais de 80 anos
depois, quem foi efetivamente responsável pela fome que matou milhões de
ucranianos.
Relatórios da polícia secreta e cartas dos
distritos produtores de grãos em toda a União Soviética, ignorados pela cúpula
do Partido Comunista, descreviam crianças com estômagos inchados por falta de
alimentação, famílias comendo grama, capim, cavalos e animais de estimação. Os
documentos pesquisados pela autora trazem relatos, inclusive, de canibalismo.
A falta de alimentos seria decorrente da
política stalinista de coletivização das propriedades rurais, que forçou os
camponeses a abrir mão de suas terras, e se juntar às fazendas coletivas. Em
uma realidade sem televisão nem internet, com fronteiras fechadas e poucas
viagens ao exterior, imperava a negação dos fatos e dos números.
Applebaum narra que os médicos e
enfermeiros foram instruídos a fraudar atestados de óbito, registrando morte
por doença infecciosa ou ataque cardíaco no lugar de inanição. O termo
“holodomor” - que deriva dos termos ucranianos para fome (“holod”) e extermínio
(“mor”) - é utilizado como referência daqueles anos.
Segundo a historiadora, a União Soviética
sempre se recusou a reconhecer a grande fome. A história só começou a ser
escrita a partir de 1991, com a dissolução da URSS e a independência da
Ucrânia.
Naquele ano, o Partido Comunista Ucraniano
aprovou uma resolução culpando Stalin e sua comitiva mais próxima pelo morticínio
daquela população. Uma responsabilização que se consumou meio século depois, e
após a morte dos responsabilizados.
Apesar desse posicionamento do partido
ucraniano, e da recente abertura de arquivos sobre o tema em Kiev, até hoje, o
episódio é politizado, contrapondo russos e ucranianos. Em 2015, o “Sputnik
News”, sítio de propaganda russa na internet, qualificou a grande fome como um
dos mais famosos mitos do século XX. Em 2016, o governo russo afirmou que
somente os nazistas reconheciam a ocorrência do “holodomor”.
A gravidade da pandemia no Brasil até hoje é relativizada, remédios de eficácia negada pela ciência são administrados aos incautos, faltam vacinas, e abre-se espaço para insultos e deboche. A CPI apura responsabilidades, mas é provável que o julgamento dos responsáveis se dê pela história, e que as urnas apliquem o castigo.
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