EDITORIAIS
500 mil mortos
O Estado de S. Paulo
Há algo de profundamente perturbador quando
parte da sociedade, estimulada pela desumanidade do governo de Jair Bolsonaro,
considera natural a morte de meio milhão de conterrâneos na pandemia de
covid-19. O choque é ainda maior quando se constata que muitos desses
brasileiros mortos poderiam ter sobrevivido, não fosse a inépcia criminosa do
governo, resultado direto do comportamento irresponsável do presidente.
Bolsonaro não se sentiu obrigado a dirigir
nenhuma palavra de conforto e pesar quando a terrível marca de 500 mil mortos
foi atingida. É como se essas vítimas não fossem dignas de luto.
O ministro das Comunicações, Fábio Faria,
foi didático ao explicar por que não se deveria lamentar a morte de 500 mil brasileiros.
No Twitter, escreveu: “Em breve vocês verão políticos, artistas e jornalistas
‘lamentando’ o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões
de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do
‘quanto pior, melhor’. Infelizmente, eles torcem pelo vírus”.
Na lógica bolsonarista, portanto,
comover-se ou revoltar-se com a morte de meio milhão de brasileiros equivale a
“torcer pelo vírus” contra o Brasil. O importante, segundo o sequaz do
presidente, é “comemorar” vacinas que Bolsonaro sabotou (e continua a sabotar,
duvidando de sua eficácia) e os milhões de curados de uma doença cuja
letalidade média é de 1% no mundo, mas que no Brasil superou 4% em março,
segundo a Fundação Oswaldo Cruz. Ou seja, o Brasil do ministro Fábio Faria
poderia ter mais vacinas e menos óbitos, mas escolheu deliberadamente ter menos
imunizantes e incitar seus cidadãos a se exporem a uma doença fatal.
Ao menosprezar os que morreram, o governo os trata como fracos que faleceriam de qualquer maneira, seja pela idade, seja por terem “comorbidades”. Em março passado, quando mais uma vez estimulou os brasileiros a ignorarem medidas de isolamento social, Bolsonaro disse que “temos que enfrentar os problemas, respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades”. A respeito dos mortos, declarou na mesma ocasião: “Chega de frescura, de mimimi! Vão ficar chorando até quando?”.
Depreende-se que, para Bolsonaro e sua
grei, a covid deve servir para realizar uma espécie de “seleção natural”: os
que sobrevivem à pandemia se provam fortes o bastante para integrar a
comunidade nacional idealizada pelo bolsonarismo; já os que morrerem não
passaram no teste.
A isso se dá o nome de darwinismo social,
ideologia que parece nortear Bolsonaro desde sua posse, influenciando ministros
como Fábio Faria e Paulo Guedes – aquele para quem há brasileiros que passam
fome porque a classe média desperdiça comida, e não em razão do desemprego que
o governo nada faz para mitigar.
Ou seja, os delitos do governo Bolsonaro na
pandemia não são somente de ordem jurídica ou administrativa, mas sobretudo
moral. É como se o presidente não reconhecesse os milhares de mortos como
cidadãos do país que ele julga governar.
Nessa nação delirante, ganha cidadania plena
somente quem devota fé absoluta em Bolsonaro – a ponto de tomar remédios sem
eficácia só porque foram propagandeados pelo presidente e de deixar de tomar
vacinas eficazes só porque foram desacreditadas por Bolsonaro.
Para os “fortes” do país de Bolsonaro, o
uso de máscara e as restrições de movimento, essenciais para conter a
disseminação do coronavírus, são atentados às “liberdades” de que se julgam
titulares e que estão acima do direito à saúde e à vida dos demais brasileiros.
São, ademais, sinais de covardia, incompatíveis com a imagem viril que
pretendem imprimir ao país que inventaram.
As manifestações de opositores do
presidente no sábado passado em cerca de 200 cidades do País mostram, contudo,
que cada vez menos cidadãos estão dispostos a viver no país do bolsonarismo ou
a participar do experimento social-darwinista liderado pelo presidente da
República. Exige-se nas ruas que o presidente pelo menos se envergonhe da marca
de meio milhão de mortos, como faria qualquer chefe de Estado decente. Para sentir
vergonha, no entanto, é preciso tê-la.
Mais covid e menos capital
O Estado de S. Paulo
Além da mortandade e da crise econômica, a
pandemia impôs ao Brasil uma redução de 62% no investimento direto estrangeiro
no ano passado, segundo o Relatório Mundial de Investimento 2021, da Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Foi uma perda superior às
médias da América do Sul, 54%, e da América Latina, 45,5%, de acordo com o
documento. O valor aplicado na economia brasileira pelos investidores de fora
foi o menor em duas décadas, tendo chegado a US$ 25 bilhões, segundo o informe.
Os números contabilizados no Brasil pelo Banco Central (BC) são diferentes e
apontam ingresso líquido de investimento direto de US$ 34,2 bilhões em 2020,
mas, apesar da diferença de critérios contábeis, há convergência quanto a um
ponto essencial: a queda foi muito grande. Pelos dados de Brasília, a queda em
um ano chegou a 50,6%.
O Brasil também se distingue, no relatório
da Unctad, pela maior incidência de casos de covid-19, em 2020, pelo número de
mortes e pela adoção de “medidas suaves” de contenção da mobilidade. O
contraste com o exemplo chileno aparece no parágrafo seguinte: “Em meio a
medidas severas de lockdown, os fluxos de investimento direto estrangeiro para
o Chile declinaram 33%, para US$ 8,4 bilhões”. A resiliência do país, em
comparação com a de outros sul-americanos, “resultou da rápida recuperação dos
preços dos minérios, dos gastos fiscais para sustentação econômica e da
execução de uma das campanhas de vacinação mais velozes do mundo”.
Do lado positivo, a experiência brasileira
se destaca, regionalmente, pelo volume das transferências fiscais à população
vulnerável. Os gastos fiscais, segundo a análise da Unctad, permitiram atenuar
a contração econômica. No Brasil o Produto Interno Bruto se reduziu 4,1%,
enquanto na América do Sul a perda média chegou a 6,6%. Dentre as principais
economias latino-americanas, a brasileira deve ser, segundo a análise, a mais
rápida no retorno aos níveis pré-pandêmicos.
O investimento direto na América Latina
deve permanecer “substancialmente estável” em 2021 e abaixo do aumento médio
estimado para o mundo em desenvolvimento, de acordo com o relatório. Não se
espera a recuperação dos níveis pré-crise, no caso dos países
latino-americanos, antes de 2023. O crescimento econômico regional deve chegar
a 4,3% neste ano.
Quanto ao crescimento do PIB, o Brasil deve
igualar-se à média regional e talvez superá-la, neste ano, pelas estimativas do
mercado. A mediana das projeções na pesquisa Focus, do BC, já bateu em 5%.
Quanto ao ingresso de capitais para a atividade empresarial, as expectativas
são mais moderadas. Segundo a Focus, o investimento estrangeiro direto
deve atingir US$ 58,1 bilhões neste ano, US$ 67 bilhões no próximo, US$ 70
bilhões em 2023 e US$ 71,8 bilhões em 2024.
Confirmadas essas projeções, em 2023 o
ingresso líquido de investimento direto será ligeiramente superior ao de 2019,
quando alcançou US$ 69,2 bilhões, mas inferior aos valores de 2018, 2016, 2014,
2013, 2012, 2011 e 2010. Em todos esses anos o investimento superou US$ 74
bilhões, em 2014 chegou a US$ 87,7 bilhões e em 2011, a US$ 101,1 bilhões.
O Brasil já foi bem mais atraente para os
investidores. Apesar de tropeços na política econômica e de estratégias às
vezes discutíveis, a imagem de um país destinado ao crescimento prevaleceu
durante a maior parte do tempo. Voltou a predominar logo depois da recessão de
2015-2016, mas o futuro de novo se embaçou, quando ficou evidente a falta de
rumo, apesar das promessas de reformas e de modernização institucional.
O desinteresse do presidente em relação às
tarefas de governo, a estreiteza de seus objetivos e a incapacidade da equipe
econômica de esboçar metas de crescimento e de modernização refletem-se nas
projeções de médio e de longo prazos. Taxas anuais de crescimento em torno de
2,5% definem os cenários além do ano corrente, como se o País estivesse
condenado à lentidão mesmo quando o vigor aumenta na maior parte do mundo. Com
o atual governo, está mesmo.
ESG da teoria à prática
O Estado de S. Paulo
Mais do que um imperativo moral, a
responsabilidade do setor privado nas áreas ambiental, social e de governança
(ESG, na sigla em inglês) é hoje um imperativo econômico. Não se trata mais de
benemerência, mas de competitividade. A pandemia – um alerta dos riscos
derivados dos desequilíbrios entre o universo natural e o humano – e seu
impacto socioeconômico devastador aceleraram a demanda pelo comprometimento
corporativo com o desenvolvimento sustentável. A cultura da sustentabilidade
está consolidada no ideário contemporâneo. O maior desafio agora é
concretizá-la em ações. Por isso, foi mais do que oportuno o tema do Summit
ESG do Estado: Da Teoria à Prática.
As exigências começam nos investidores e
atravessam toda a cadeia de produção até os consumidores. Segundo o
jornal Financial Times, em 2018 o setor de investimentos em ESG foi
estimado em cerca de US$ 31 trilhões. Pesquisa da consultoria McKinsey revelou
que 85% dos brasileiros dizem que se sentem melhor comprando produtos
sustentáveis, e uma pesquisa global mostrou que 97% dos entrevistados esperam
que as marcas solucionem problemas sociais.
Um estudo publicado pela Universidade de
Nova York apontou que 58% das empresas que seguem os princípios de
sustentabilidade registraram melhora dos resultados operacionais e performance
financeira. Além de atrair investidores e consumidores, esse potencial está
relacionado à produtividade.
É algo intuitivo, mas uma profusão de
estudos tem comprovado que empresas que investem na diversidade de suas equipes
conjugam mais conhecimentos e habilidades, repertório emocional e margem de
acesso a novos mercados, com ganhos significativos em relação a empresas com
quadros homogêneos. O Fórum Econômico Mundial estima um aumento de 25% a 36% na
lucratividade; 20% nas taxas de inovação; e 30% na habilidade de identificar e
reduzir riscos nos negócios.
Práticas ESG são congênitas às startups.
Para empresas já formadas, os especialistas ouvidos no Summit sugerem
parcerias com outras instituições, inclusive acadêmicas. Um bom referencial é a
agenda de sustentabilidade do Sebrae. É também importante começar pelo próximo
rumo, seguindo pelo mais distante, ou seja, identificar as “partes
interessadas” (stakeholders) diretamente afetadas pelos negócios para tecer uma
rede de colaboração orgânica com fornecedores e consumidores. Grandes empresas
brasileiras têm avançado nesse sentido.
A JBS, uma das maiores produtoras mundiais
de alimentos, se comprometeu a zerar o balanço das emissões de gases de efeito
estufa até 2040. Isso implica monitorar não só os fornecedores, mas, por meio
da tecnologia blockchain, os fornecedores dos fornecedores. A Ambev, consciente
de que o consumo de álcool é uma das principais causas de acidentes de
trânsito, criou um programa global de prevenção, que inclusive foi apontado
como exemplo pela ONU. A empresa também tem um dos menores níveis de consumo de
água por litro de produto.
Ações que promovam melhorias em comunidades
locais, mas prejudiquem o meio ambiente – ou vice-versa – são contraproducentes
e a longo prazo insustentáveis. Para equilibrar o “E” (environmental) e o “S”
(social) o “G” (governance) é crucial. A Vale não só anunciou a recuperação de
500 mil hectares de florestas até 2030, como está estruturando um modelo-piloto
socioambiental no município de Apuí (AM). Em parceria com o Idesam, a empresa
passou a incentivar o cultivo de café em áreas com mais sombras dentro da mata,
o que, além de ajudar na recuperação da floresta, gerou um café de qualidade
superior à média nacional. Em alguns anos a colheita do Café Apuí saltou de 8
para 17 sacas por hectare, envolvendo mais de 40 famílias. A meta nos próximos
anos é chegar a 300 famílias.
O princípio fundamental é que a responsabilidade não é antagônica à lucratividade. Ao contrário, em um cenário de recuperação pós-pandemia, empresas dispostas a colaborar com o desenvolvimento sustentável também são aquelas que atrairão mais investidores e consumidores, gerando mais lucros e empregos.
Os pecados de Milton Ribeiro à frente do
MEC
O Globo
Não bastassem o esvaziamento e
aparelhamento ideológico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o corte de verbas das universidades
federais, o descaso com a inclusão digital para o ensino remoto e toda a
confusão criada em torno do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), verifica-se
agora que 2,7 milhões de alunos do ensino público em 677 municípios não estão
comendo a merenda escolar porque as escolas estão fechadas e as crianças não
recebem os mantimentos em casa. Os dados são do Painel de Monitoramento da
Educação Básica no Contexto da Pandemia, iniciativa da Universidade Federal de
Goiás (UFG), com apoio do Ministério da Educação (MEC). O contexto em que isso
acontece não poderia ser mais delicado. Devido à crise sanitária, mais da
metade dos lares brasileiros tem algum grau de insegurança alimentar.
No caso da merenda, o custo é dividido
entre os governos federal, estaduais e municipais. Parte da culpa é,
certamente, de prefeitos ineptos. Mas, como disse ao GLOBO ontem Sandra Helena
Pedroso, presidente do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Rio, o
baixo repasse do governo federal, que não sofre reajuste desde 2017, é uma
barreira para municípios mais carentes. O valor por aluno oscila entre R$ 0,32
e R$ 1,07 por dia.
A desatenção à alimentação dos alunos é
mais um entre muitos exemplos da incompetência do governo federal justamente
quando o país enfrenta o momento mais desafiador da educação brasileira, devido
aos problemas causados pela pandemia. Atualmente, o MEC tem prioridades
completamente distantes da realidade trágica que aflige as escolas no Brasil.
As principais são o projeto que regulamenta o ensino domiciliar e a implantação
de mais escolas “cívico-militares” e de um “filtro ideológico” no Enem.
O ministro Milton Ribeiro comete dois
erros. Primeiro, as prioridades de sua lista são absurdas. Quando se fala em
ensino doméstico ou em escolas cívico-militares, os números estão na casa dos
poucos milhares. Parece piada de mau gosto achar que o problema da educação
será resolvido com um “tribunal” para garantir pretensos valores morais no
Enem. Só a adesão a uma agenda ideológica de cunho religioso que nada tem a ver
com educação ou pedagogia explica tais obsessões.
O segundo pecado de Ribeiro, talvez o
maior, é não ter competência nem senso de urgência. As questões que o país
precisa enfrentar são os milhões sem acesso satisfatório a aulas remotas, as
lacunas no aprendizado, a falta de planos para ajudar estados e municípios a
retornarem às aulas com segurança e o potencial aumento da evasão.
Em 2020, 24% dos jovens entre 15 e 17 anos declararam já ter pensado em parar de estudar, percentual que pulou para 32% neste ano, segundo o levantamento “Juventudes e a pandemia do coronavírus – 2ª edição”, do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), em parceria com a Fundação Roberto Marinho e outras instituições. Especialistas em educação têm chegado a uma conclusão que pensavam impossível há pouco tempo. Parecia que Ricardo Vélez e Abraham Weintraub brigariam para ver quem entraria para a História como pior ministro da educação. Até que apareceu Ribeiro. Como diz o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), ele também é forte candidato.
É um erro querer escolher vacinas
comparando índices de eficácia
O Globo
No dia 4 de maio, uma longa fila se formou na Clínica da Família Estácio de Sá,
no bairro carioca do Rio Comprido. A corrida ao posto ocorreu depois que o
secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, aplicou a primeira vacina da
Pfizer na cidade. O estoque esgotou rapidamente. Muitos saíram sem se vacinar,
embora doses da AstraZeneca estivessem disponíveis. O episódio ilustra um
comportamento equivocado, que se repete em todo o país: cidadãos tentando
escolher a vacina que vão tomar.
Os “sommeliers” das vacinas são movidos por
premissas falsas. Supõem que uma seja melhor que a outra, comparando a eficácia
global apontada nos testes: Pfizer, 95%; Moderna, 94%; Sputnik, 92%;
AstraZeneca, 76%; Janssen, 66%; CoronaVac, 50,4%. Só que é um erro científico
grave comparar estudos feitos em condições diferentes, com populações
diferentes, sob premissas diferentes. É natural que uma vacina testada quando a
epidemia estava em expansão (como Janssen ou AstraZeneca) demonstrasse eficácia
menor que as testadas em períodos de menor contágio (Pfizer e Moderna). Exceto
pela contraindicação em casos particulares — como gravidez ou portadores de
certas condições —, todas se revelam igualmente bem-sucedidas no objetivo
primordial da vacinação: evitar internações e mortes.
No Reino Unido, dados preliminares que
comparam a efetividade da Pfizer à da AstraZeneca chegaram a resultados quase
idênticos na prevenção de hospitalizações e mortes, acima de 92% em ambos os
casos. Estima-se que as vacinas tenham poupado 14 mil vidas entre pessoas acima
de 60 anos até o fim de março. No Brasil, a vacinação fez a proporção de mortes
em idosos com 80 anos ou mais cair de 25%, nas primeiras seis semanas do ano,
para 12,4% na 19ª, segundo estudo preliminar. Se permanecessem as taxas de
mortalidade iniciais, seriam esperadas 43.802 mortes a mais no período. A
principal vacina responsável foi a CoronaVac.
Conduzido pelo Butantan, um estudo com a
CoronaVac em Serrana (SP) também mostrou resultados animadores. A vacinação,
que envolveu toda a população com mais de 18 anos, fez despencar casos
sintomáticos (80%), hospitalizações (86%) e mortes (95%) após a segunda dose.
Segundo o Butantan, quando a cobertura passou de 70%, a imunização reduziu a
incidência da doença mesmo nos grupos que não receberam a vacina, como crianças
e adolescentes. Um estudo semelhante está em andamento em Botucatu (SP) com a
AstraZeneca.
É evidente que o comportamento absurdo que tem levado brasileiros ao equívoco de selecionar vacinas é fruto da epidemia de desinformação que contamina o país. A escolha não faz qualquer sentido diante do quadro com mais de 500 mil mortes e menos de 12% vacinados com as duas doses. Num momento em que a epidemia volta a acelerar, não importa qual vacina tomar. A melhor é a que está disponível nos postos. Qualquer proteção é melhor que proteção nenhuma. Centenas de milhares de brasileiros infelizmente não tiveram essa chance.
Vacina sem lacuna
Folha de S. Paulo
Todos os níveis de governo precisam buscar
aqueles que abandonaram a imunização
Por bem-vinda que seja a aceleração do
ritmo da vacinação contra a Covid, com o impulso da saudável competição entre
governadores e prefeitos, cumpre apontar que o processo não se dá sem lacunas.
A Folha mostrou em diferentes
reportagens que contingentes importantes que já deveriam ter sido vacinados não
apareceram para receber a primeira dose. Outros tantos abandonaram o trajeto
vacinal no meio, o que compromete a proteção contra o coronavírus.
No começo de junho, constatou-se que 3,6 milhões
de brasileiros com mais de 70 anos não estavam completamente imunizados contra
a epidemia no país, dos quais 1 milhão não tinha tomado nem a primeira dose e
2,6 milhões não compareceram para a segunda.
Isso representa mais de um quarto dos
brasileiros nessa faixa etária, que somam 13,5 milhões de pessoas, de acordo
com a estimativa da Campanha Nacional de Vacinação.
Antes, em abril, noticiou-se que mais de
meio milhão de pessoas que receberam a primeira dose do imunizante desde
janeiro tinham perdido o prazo da segunda etapa vacinal. O cálculo da época
considerou a Coronavac, que tem intervalo entre doses de 28 dias.
Tais contas são possíveis porque cada
pessoa imunizada é registrada em um sistema do próprio Ministério da Saúde com
um código de identificação individual, no qual há informações sobre idade, dose
da vacina recebida e grupo prioritário a que pertence.
Essa base integra o DataSUS, serviço do
Sistema Único de Saúde criado na década de 1990 para compilar informações para
o embasamento de políticas públicas.
Pelos números do DataSUS, já se sabia que a
taxa de abandono no caso de vacinas com mais de uma dose —como a meningocócica
C (duas doses) e a contra a poliomielite (três doses)— andava alta no país:
passara de 15,8% em 2015 para 23,4% em 2019.
Tal cenário, somado à desinformação quanto
à pandemia, muitas vezes fomentada pelo próprio governo federal, tornava
previsível a necessidade ampla de campanhas para engajar a população no
processo. Isso não aconteceu.
Usar o DataSUS para definição de estratégias
nacionais deveria ser tarefa diária do Ministério da Saúde, mas a pasta prefere
responsabilizar estados e municípios.
É preciso fazer campanhas e busca ativa de
grupos prioritários que ficaram para trás, além de facilitar a imunização
dessas pessoas sem datas
específicas de repescagem. Isso deve ser feito especialmente no caso
dos idosos. A ciência, afinal, tem apontado que a idade é o principal fator de
risco para a Covid.
A vacinação ampla, cabe sempre repetir, é a
única forma virtuosa de superar a crise sanitária.
Pêndulo persa
Folha de S. Paulo
Pressionado por coalizão regional e pelos
EUA, Irã endurece com novo presidente
Apesar de promover eleições de forma
regular, a teocracia iraniana não é uma democracia. Fórum de luminares do
regime, o Conselho dos Guardiões veta candidatos inadequados ideologicamente.
De tempos em tempos, contudo, o pêndulo do
país persa se move, dando algum sinal de vitalidade ao ossificado sistema
político da revolução de 1979, que é liderado pelo aiatolá Ali Khamenei.
Assim, alternaram-se moderados como
Mohammad Khatami e radicais como Mahmoud Ahmadinejad, que foi substituído novamente
por um nome mais suave, Hassan Rouhani, em 2013.
Na sexta-feira (18), 62% dos
eleitores escolheram
presidente um ultraconservador, Ebrahim Raisi. O menor
comparecimento às urnas da história indica em si um protesto contra a natureza
do pleito, além de mostrar o impacto da má gestão da pandemia e da repressão a
protestos desde 2017.
Raisi é um linha-dura. Ao fim da guerra
Irã-Iraque, em 1988, foi um dos responsáveis pela execução de talvez 5.000
prisioneiros políticos. Desde 2019, é o presidente do Judiciário. Nessa
condição, apontou alguns dos tais guardiões, que abriram o caminho para sua
eleição retirando rivais da corrida.
O Irã constitui um dos polos vitais do
precário equilíbrio estratégico do Oriente Médio, e Raisi é uma resposta do seu
governo ao cerco sofrido desde 2017, quando Donald Trump assumiu o poder.
O republicano retirou Washington do acordo,
de resto problemático, que coibia o desenvolvimento de armas nucleares por
Teerã.
Patrocinou também uma frente anti-Irã.
Nesse processo, Israel fez as pazes com alguns países árabes sunitas e
estabeleceu uma antes impensável aliança tácita com o centro desse ramo majoritário
do islamismo, a Arábia Saudita.
O Irã, fortaleza do minoritário e rival
xiismo, trabalha com uma rede de grupos aliados locais para espezinhar tanto o
Estado judeu quanto esses vizinhos árabes.
Em sua primeira entrevista, Raisi disse a que
veio: quer concessões americanas para voltar a negociar a questão
nuclear como deseja Joe Biden, não aceita conversar com o presidente americano
e descarta colocar seus preciosos mísseis balísticos em qualquer negociação.
Otimistas verão na fala de Raisi abertura para discutir a guerra por procuração contra os sauditas no Iêmen, mas sob seus termos. Tudo indica que Biden não terá vida fácil com o novo presidente.
Pandemia segue sem controle, após mais de
500 mil mortes
Valor Econômico
A despreocupação do presidente com as
pessoas que dependem do Estado revela o caráter antissocial de seu governo
As mortes por covid-19 ultrapassaram a
marca de 500 mil no sábado à tarde, sem que o governo de Jair Bolsonaro tenha
emitido um gemido de pesar. A vacinação tardia, um dos motivos para que o
Brasil esteja no segundo lugar mundial em número de vítimas, pode ser acelerada
e esse é um dos poucos motivos de esperança no controle de uma pandemia que
ainda mata mais de 2 mil por dia.
A tênue linha que separa uma terceira onda
da covid-19 e a diminuição dos casos é a rapidez da imunização, hoje ainda
aquém das necessidades em decorrência do absoluto descaso do governo em
conseguir doses da vacina. Até agora, apenas 15% da população adulta recebeu a
segunda dose. Ao ritmo de junho, 989 mil aplicações por dia - a melhor média do
ano - o Brasil chegaria em 5 de dezembro com 70% da população vacinada com duas
doses. (O Globo, 19 de junho).
O limitante, de novo, é a quantidade de
vacinas, cujo fornecimento tem sido sujeito a intempéries políticas e à falta
de matéria prima. Com a disponibilidade atual, é possível vacinar 1 milhão por
dia, mas com ampla oferta o país já demonstrou ser capaz de imunizar mais de 2
milhões de pessoas diariamente. O planejamento do governo, no entanto, é uma
peça de ficção. Documentos que chegaram à CPI mostram que o inepto Eduardo
Pazuello, quando ministro da Saúde, chegou a prever que 50% da população adulta
estaria vacinada em meados do ano e que o suprimento ultrapassaria 600 milhões
de doses (Folha de S. Paulo, 19 de junho). A indolência evidente na obtenção de
imunizantes se transformou, meses depois, em otimismo alucinado.
A documentada recusa do governo na busca de
vacinas tornou-se ainda mais injustificável porque para os brasileiros elas
viraram o único meio de escapar dos males do vírus. Desde o início, a pandemia
foi minimizada pelo presidente da República, que desarmou o aparelho de Estado
de se preparar para enfrentá-la a sério. O país não fez testagem em massa, nem
rastreamento eficaz, enquanto o presidente Bolsonaro fazia campanha contra as
máscaras e contra o isolamento social, ameaçando os governadores que,
felizmente, o desobedeceram. Do começo ao fim, pôs em dúvida até a eficácia das
vacinas.
É inegável que o uso de todos os recursos
colocados à disposição pelo conhecimento científico teria reduzido em dezenas
de milhares as mortes por covid-19. Quinze meses depois da pandemia se instalar
no mundo, muitos países aprenderam muito, enquanto o governo brasileiro
estancou no curandeirismo do kit precoce. Na luta contra uma tragédia como
essa, com meio milhão de mortos, erros e correção de rumos são inevitáveis. O
inacreditável no caso do governo Bolsonaro é que não houve correção nenhuma.
Até hoje, o presidente acha que as vacinas são experimentais, que o
distanciamento social só serve para atrapalhar sua reeleição, que a máscara é
um símbolo de covardia e que a imunidade só virá com a contaminação de todos
pelo vírus - e sabe-se lá quantos milhares a mais de mortos. Por isso o país
ficou sem ministro da Saúde no auge da pandemia - um histórico desastre
intencional. As Forças Armadas seguiram todos os protocolos, execrados pelo seu
ignorante comandante chefe.
Após 500 mil mortos, 18 Estados e o
Distrito Federal continuam com mais de 80% de seus leitos ocupados. Em nove
capitais, entre elas Curitiba e Brasília, a ocupação dos leitos ultrapassa 90%.
Só com a aceleração da vacinação será possível virar a página desta tragédia,
mas isto ainda não está assegurado quando o país é governado por um presidente
que desdenha suas vítimas. “O Brasil é um spa para o vírus”, disse o
epidemiologista José Cássio de Moraes, da Santa Casa de São Paulo e membro do
Observatório Covid-19.
As vítimas são, na maioria, de pobres e pretos. Motoristas de caminhão, faxineiros, vendedores, porteiros de prédio, motoristas de ônibus, alimentadores de linhas de produção estão entre os contingentes ocupacionais mais atingidos pela pandemia (Folha de S. Paulo, 20 de junho). A despreocupação do presidente com as pessoas que dependem do Estado para se defender de um vírus assassino revela o caráter antissocial de seu governo. O presidente percorre todos os cantos do país onde haja uma formatura de militares e policiais, mas em nenhum momento foi visitar um hospital. Se por suas nulas virtudes lhe é impossível entrar para a história, já o fez por seus inúmeros vícios.
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