O Globo
Abra-se este artigo com um assentamento:
escreverá aqui — contra a pirataria apregoada como desestatização — alguém a
favor da capitalização da Eletrobras. A favor de que seja diluída, sob oferta
ao mercado, a participação da União na empresa até que perca o lote
majoritário. A favor; porque impossível ao Estado dar à companhia as condições
de modernização mínimas necessárias para a provisão de segurança energética ao
povo.
A favor, portanto. Mas não a qualquer
custo. E, certamente, não para que usineiros sem gás — e senadores sem
gasodutos e vergonha — ergam suas termelétricas; e desde já com a segurança não
competitiva de muitos mil megawatts contratados, depois de muitos milhões
despejados em obras para deleites paroquiais. Não para que sejam contemplados
com subsídios infinitos os que fogem de concorrer livremente e que sempre têm
parlamentares para lhes financiar — com dinheiro alheio — o capitalismo de
compadrio.
Não a qualquer custo, portanto. Nem de
qualquer maneira.
Falemos, pois, do modo. A forma importa. O texto original do Ministério da Economia era razoável. Uma operação de tal monta, porém, jamais poderia ser proposta por meio de medida provisória. Instrumento errado; afronta ao processo legislativo. Escolha do governo, com o assentimento de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco. Já de largada um convite à judicialização. Já de início também o Planalto e os comandos do Congresso expondo a intenção de explorar os prazos curtos de tramitação de uma MP para aterrar o debate e passar o trator. Conseguiram; ao que decerto terá contribuído, sobretudo no Senado, a natureza do plenário virtual, paraíso para a imposição do rolo compressor.
(Outra garantia de judicialização embutida
nessa tratantada: o atropelamento de Ibama e Funai, via MP, para encaixar a
construção — em território indígena — do famoso Linhão do Tucuruí, a linha de
transmissão de energia Manaus-Boa Vista.)
Sabe-se que o palestrante Guedes precisava
de uma grande privatização para animar o auditório. (Não se tratará de
privatização; mas assim consagrou o senso comum.) Conseguiu. Poderá contar sua
história de sucesso; lá no mundo paralelo em que um programa reformista liberal
poderia ser conduzido pelo governo de um populista-reacionário gerador de instabilidades,
que despreza a política e que levantou bem-sucedido empreendimento familiar na
superfície do Estado. Poderá contar sua história aos crentes, o ministro. A de
um projeto de desestatização razoável, despejado pelo Executivo no Congresso,
pervertido na Câmara, prostituído no Senado e aprovado a toque de caixa sem a
mais mínima deliberação parlamentar. Mas que resultará, ora, na sua grande
privatização. O mercado está feliz. Haverá negócio, afinal. Sempre há. Alegria!
A Eletrobras do mundo real foi privatizada
— rateada entre interesses patrimonialistas — para que se pudesse avançar à
capitalização da Eletrobras paralela. A consequência surrealista sendo o custo
da primeira operação resultar maior do que o valor a ser aferido na segunda.
Pagaremos nós por esse sonho liberal, sonhado num governo que se recusa a fazer
política — que deixou o projeto ser adulterado — e que se satisfaz com
propaganda.
A que valor — o máximo — poderá chegar a
capitalização da empresa? Estima-se que a algo como R$ 60 bilhões. Mas sejamos
generosos. Vá lá: R$ 70 bilhões. E a quanto irá o preço das muambas incluídas
pelo “Congresso reformista” do guedismo-cultural? Calcula-se que a mais de R$
80 bilhões.
Mas Guedes terá uma privatização — grande,
não é? — para chamar de sua.
Os senadores que votaram “sim” para essa
medida provisória sabem por que o fizeram. Não sabem, entretanto, no que
votaram. Ou que me apresentem um só estudo de viabilidade — uma só projeção de
impacto tarifário — em que se basearam para apoiar o troço. Não há. E não
haveria como haver; se, até o início da votação, eram mercadejados e acrescidos
os megawatts que, enfim, arrebanhariam as freguesias necessárias à formação de
apertada maioria.
Sejamos ainda mais claros: votaram por um
texto que não poderiam conhecer.
Um contrabando para cada voto; e então
chegamos à MP relativa a uma desestatização da Eletrobras que resolve — com a
mão do Estado — a vida da turma do gás. Muito do que não se logrou embutir no
novo marco legal do setor foi encontrar abrigo no arranjo por essa privatização
de fantasia, cuja urgência — com o aval do liberalismo de lives — foi
instrumentalizada para assegurar os interesses de grupos privados. Mas Guedes —
ministro da Economia de um governo de Twitter — terá sua privatização. O zap
profundo já está informado. Sucesso! A fatura a ser paga por nós, em nossas
contas de luz; nós, que bancaremos termelétricas em estados do Norte, do
Nordeste e do Centro-Oeste, algumas das quais em localidades desprovidas de
oferta de gás. De modo que não bastará erguer a usina. Será preciso construir
os gasodutos.
Não foram poucos os senadores em dúvida que, de súbito, se converteram em ardorosos defensores do projeto. Imagine... Era para vender a Eletrobras. E, de repente, ganharam obras de infraestrutura para chamar de suas. Um conjunto antieconômico caricatural. Mas tudo bem: Guedes terá sua privatização.
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