Nessa mesma entrevista no interior de SP, presidente voltou a defender medicamento sem eficácia contra a Covid
João Valadares / Folha
de S. Paulo
RECIFE
- Num
momento em que o país supera 500 mil mortes pela Covid e que é alvo de
protestos a favor do impeachment, o presidente Jair Bolsonaro reagiu com
agressividade a perguntas feitas a ele nesta segunda-feira (21) em
Guaratinguetá, no interior de São Paulo.
Antes de interromper abruptamente uma rápida
entrevista, o presidente mandou uma repórter e integrantes da sua própria
equipe calarem a boca, tirou a máscara, reclamou da CNN Brasil e fez ataques à
TV Globo.
O presidente se irritou inicialmente após ser
lembrado que havia sido multado pelo Governo de São Paulo por não ter usado
máscara de proteção durante uma motociata no último dia 12.
Após citar a utilização de capacete como
justificativa naquele caso, foi questionado por chegar ao evento em
Guaratinguetá sem máscara e respondeu: "Eu chego como quiser, onde eu
quiser, eu cuido da minha vida. Se você não quiser usar máscara, você não
usa".
A irritação do presidente ocorre num momento de
pressão por uma sequência de fatos negativos ao governo.
Além das críticas diante da marca de 500 mil mortes
pela Covid e dos protestos que ganharam corpo nas ruas no sábado (19),
Bolsonaro teve queda de popularidade nos últimos meses, enfrenta desgaste com a
CPI da pandemia no Senado e viu seu principal rival potencial para 2022, o
ex-presidente Lula, ganhar projeção.
Levantamento do Datafolha em maio mostrou
o petista com 41% das intenções de voto no primeiro turno, contra 23% de
Bolsonaro, no cenário eleitoral para o ano que vem. No segundo turno, Lula
venceria por 55% a 32%.
O vídeo com a entrevista do presidente nesta
segunda-feira foi postado nas redes sociais por um canal bolsonarista.
"CNN? Vocês elogiaram a passeata agora de
domingo, né? Jogaram fogos de artifício em vocês e vocês elogiaram ainda",
afirmou Bolsonaro a repórteres, em uma referência aos protestos do último sábado que reuniram
milhares de manifestantes pelo país para pedir mais vacina e a saída do
presidente.
Sobre o não uso de máscara na motociata de São Paulo, o presidente afirmou: “Eu estava com capacete balístico a prova de 762 [durante passeio de motocicleta em São Paulo no último dia 12]. Então, vou ser multado toda vez que andar de moto por aí? Porque eu sou alvo de canalhas do Brasil", disse o presidente, antes de interromper a entrevista e se dirigir a assessores posicionados atrás dele. "Dá pra calar a boca aí atrás, por favor?"
Novamente, Bolsonaro disse que era a prova viva de
que o tratamento precoce funcionava, apesar da falta de comprovação científica.
“Tudo o que eu falei sobre a Covid, infelizmente,
para vocês, deu certo. Tratamento precoce salvou a minha vida. Muitos
jornalistas falam comigo reservadamente que usaram hidroxicloroquina e
ivermectina. Por que vocês não admitem isso?”, questionou.
Em seguida, iniciou os ataques à Globo. No último
sábado, o Jornal Nacional exibiu um editorial sobre a marca de 500 mil mortes por Covid. Em tom
crítico ao governo, ainda que sem citar o presidente, o âncora William Bonner
afirmou que "foram muitos —e muito graves— os erros cometidos".
“Vocês acham que vou me consultar com o Bonner ou
com a Míriam Leitão sobre esse assunto? Parem de tocar no assunto", disse,
enquanto retirava a máscara. "Me botem no Jornal Nacional agora. Vai botar
agora? Estou sem máscara em Guaratinguetá. Está feliz agora? Você está feliz
agora?:”
"Essa Globo é uma merda de imprensa. Vocês são
uma porcaria de imprensa. Cala a boca, vocês são uns canalhas. Vocês fazem um
jornalismo canalha, canalha, que não ajuda em nada. Vocês não ajudam em nada.
Vocês destroem a família brasileira, destroem a religião brasileira. Vocês não
prestam."
“A Rede Globo não presta. É um péssimo órgão de
informação. Se você não assiste à Globo, você não tem informação. Se você
assiste, está desinformado. Você tinha que ter vergonha na cara por prestar um
serviço porco desse que você faz na Rede Globo. Obrigado”, finalizou,
interrompendo a entrevista.
Na chegada ao evento de formatura de novos sargentos
da Aeronáutica, o presidente foi hostilizado ao descer do carro. Algumas
pessoas o chamaram de genocida e de palhaço.
No dia 11 de junho, ao entrar em um avião comercial
que estava parado no aeroporto de Vitória, parte dos passageiros gritou “fora,
Bolsonaro” e também o chamou de genocida.
Em nota sobre o episódio desta segunda-feira, a
Globo e sua afiliada repudiaram o tratamento dado pelo presidente à repórter
Laurene Santos. “Não será com gritos nem intolerância que o presidente impedirá
ou inibirá o trabalho da imprensa no Brasil. Esta, ao contrário dele, seguirá
cumprindo o seu papel com serenidade”, diz o comunicado, ao prestar
solidariedade à jornalista.
Durante a edição do "CNN 360", a
apresentadora Daniela Lima falou em nome da emissora, criticou a escalada do
presidente contra a imprensa e afirmou que ele segue insistindo em dados que
são falsos.
"É essa escalada do presidente contra a
imprensa, contra a jornalista TV Globo, que a gente repudia", afirmou.
A ABI (Associação Brasileira de Imprensa) também se
manifestou. Em nota, pediu a renúncia do presidente. “Com seu destempero,
Bolsonaro mostrou ter sentido profundamente o golpe representado pelas
manifestações do último sábado. Elas desnudaram o crescente isolamento de seu
governo.”
"Seu comportamento chega a enfraquecer o
movimento antimanicomial – movimento progressista e com conteúdo profundamente
humanitário. Já há quem se pergunte como um cidadão com tamanho desequilíbrio
pode andar por aí pelas ruas", acrescenta a nota.
"Diante desse quadro, com a autoridade de seus
113 anos de luta pela democracia, a ABI reitera sua posição a favor do
impeachment do presidente. E reafirma que, decididamente, ele não tem condições
de governar o Brasil. Outra solução –até melhor, porque mais rápida - seria que
ele se retirasse voluntariamente. Então, renuncie, presidente!", conclui.
No início da noite, após a repercussão da fala de
Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), afirmou em uma
rede social que a imprensa deve ser respeitada.
“A Covid, as mortes e os reflexos sobre o país,
embora possam aflorar maus sentimentos, impõem absoluta necessidade de união em
torno de soluções. Parte fundamental desse esforço é a imprensa, que deve ser
respeitada e livre para cumprir o dever de informar, mesmo na divergência”,
publicou sem citar diretamente o episódio desta terça.
Em nota, a maioria dos membros da CPI da Covid (7
dois 11 titulares) manifestou solidariedade à jornalista e classificou a reação
do presidente como "no mínimo, desproporcional".
"Tentar calar e agredir a imprensa é típico de
fascistas e de pessoas avessas a democracia brasileira", afirma o texto.
"Asseguramos que os responsáveis pagarão por
seus erros, omissões, desprezos e deboches. Não chegamos a esse quadro
devastador, desumano, por acaso. Há culpados e eles, no que depender da CPI,
serão punidos exemplarmente. Os crimes contra a humanidade, os morticínios e os
genocídios não se apagam e nem prescreveram."
O documento é assinado pelo presidente da comissão,
Omar Aziz (PSD-AM), pelo vice-presidente, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e pelo
relator do colegiado, Renan Calheiros (MDB-AL).
Os titulares Tasso Jereissati (PSDB-CE), Otto
Alencar (PSD-BA), Eduardo Braga (MDB-AM) e Humberto Costa (PT-PE) e os
suplentes Rogério Carvalho (PT-SE) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e a
senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) também subscrevem o documento.
Desde o início do seu governo, Bolsonaro interrompe entrevistas ou ataca jornalistas quando
confrontado com temas incômodos.
Em maio de 2020, ele mandou repórteres calarem a
boca após ser questionado sobre mudanças na Polícia Federal. Em agosto
daquele ano, disse para um jornalista que "a vontade é encher tua boca com
uma porrada" ao ser indagado sobre os depósitos feitos pelo ex-policial militar Fabrício
Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Nesta segunda-feira, no início da entrevista,
Bolsonaro lamentou as mortes por Covid no país e ressaltou que sempre defendeu
o tratamento precoce.
“Lamento todos os óbitos. Muito. É uma dor na
família. E nós, desde o começo, o governo federal teve coragem de falar em
tratamento precoce. Como está sendo conduzida essa questão parece até que é
melhor se consultar com jornalistas do que com médicos”, ironizou.
O presidente disse que é a primeira vez na história
que se busca atender pessoas depois de estarem hospitalizadas. “Sempre se falou
em tratamento precoce, para mulher, para homem. Os médicos sempre falam dessa
maneira. Não sei porque aqui você não pode falar de tratamento precoce no
Brasil."
O presidente também voltou a citar um documento do TCU (Tribunal de Contas da União) que
menciona uma suposta supernotificação de casos da Covid-19 no Brasil.
Segundo o TCU, o documento era uma análise pessoal
de um servidor, que havia sido compartilhada para discussão e não integrava
processos oficiais. A corte investiga o auditor responsável pela divulgação.
Na noite desta segunda, em conversa com apoiadores
na entrada do Palácio da Alvorada, Bolsonaro voltou a se queixar da cobertura
da imprensa sobre a pandemia. "Se você for ver o que televisão mostra e o
que jornal escreve, você... eu sou uma pessoa responsável por 500 mil
mortes", disse.
Durante evento de formatura, Bolsonaro ficou uma
parte do tempo sem usar máscara. No discurso de apenas três minutos, não fez
menções à pandemia e nem abordou questões políticas.
Mais cedo nesta segunda-feira, em conversa com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada,
em Brasília, Bolsonaro associou as passeatas de sábado em todo o país aos
"petralhas", como apoiadores do PT são pejorativamente chamados por
adversários.
"Eu acho que eu vou acabar com as manifestações
dos petralhas. Comam mortadela, pessoal, faz bem à saúde. Comam mortadela, que
faz bem à saúde. Vai acabar com as manifestações. Entendeu a jogada? Porque
tudo que eu apoio é o contrário, então, estou apoiando agora o consumo de
mortadela no Brasil", disse.
Segundo organizadores dos atos de sábado, houve
maior adesão em relação aos protestos de 29 de maio, também de
oposição ao governo Bolsonaro.
As manifestações ocorreram no mesmo dia em que o
país atingiu a marca de 500 mil mortos pela Covid. Na última semana, houve média de cerca
de 2.000 mortos por dia pelo coronavírus Sars-CoV-2. A média diária de novos
casos está em torno de 70 mil, o que deixa o atual momento entre os piores da
pandemia.
Mesmo diante desse cenário, houve aglomeração de
manifestantes em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, apesar das
recomendações de organizadores pelo distanciamento social durante os atos. A
grande maioria dos manifestantes usou máscaras, ao contrário do que ocorre em
atos bolsonaristas.
O vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) também foi
questionado nesta segunda-feira sobre as 500 mil mortes por Covid no Brasil.
Para ele, há uma questão social que agrava o quadro no país.
"É muito triste você perder esta quantidade de
vidas. É uma doença difícil e é o retrato da desigualdade socioeconômica que
nós sofremos", afirmou pela manhã, ao chegar à Vice-Presidência.
"Tem gente que tem tratamento melhor, tem gente
que não tem, tem gente que não consegue chegar no hospital. Então, é
consequência dessa situação que a gente vive e que nós temos que
corrigir", disse.
Colaboraram Daniel
Carvalho e Washington Luiz, de Brasília, e UOL
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