Valor Econômico
As reformas são um sintoma de crise aguda e
não um padrão de comportamento do sistema político
O Brasil viveu, nos últimos cinco anos, um
importante ciclo de reformas. A partir de agora, no entanto, a superação da
crise faz com que os avanços institucionais voltem a ser lentos e incrementais,
como é o padrão. A atual tramitação da reforma tributária é um bom exemplo.
Desde 2016, reformas difíceis e polêmicas
têm caminhado mesmo com pandemia, transição política, governos mal avaliados e
problemas de coordenação no Congresso. É sempre possível dizer que as mudanças
não tiveram o desenho ideal ou a rapidez necessária, mas são raros os momentos
na história brasileira com tantos avanços.
Além da limitação constitucional do gasto
público e melhorias institucionais no mercado de crédito, foram aprovadas as
reformas trabalhista e da previdência, o cadastro positivo, as leis de
falências e de licitações, a autonomia do Banco Central e os novos marcos
regulatórios do gás e do saneamento. Não é pouca coisa.
Apesar de haver uma tendência natural de se associar a agenda reformista a escolhas pessoais das lideranças políticas, a explicação para este ciclo está na longa e profunda recessão de 2014. A contração acumulada nos anos de 2015 e 2016 foi a maior dos últimos 120 anos, levando a quedas na renda e a dificuldades financeiras das empresas. O resultado foi um claro aumento da tensão social.
Esta tensão impacta o sistema político de
duas formas. A primeira é a pressão para que o Estado reaja. A ciência política
mostra que a capacidade de o Estado responder às demandas da população é
fundamental para se evitar uma crise de legitimidade e governabilidade. Isso
porque o desempenho econômico é um critério central para a avaliação dos
governos e influencia a competitividade política. Foi a história de 2016 no
Brasil.
Ao contrário do que diz o senso comum, o
sistema político é guiado pelas preferências do eleitor mediano e responde ao
interesse majoritário da sociedade. Justamente porque os políticos pensam
sempre nas eleições, o cálculo eleitoral mantém Brasília conectada com as
demandas da população. E são nos períodos de turbulência que estas demandas
ficam claras ao explicitar problemas, coordenar agendas e alinhar interesses. É
o momento em que são criados consensos e a sociedade se convence de que
mudanças são necessárias.
Isso significa que ainda que o governo se
mostre pouco comprometido com uma agenda de reformas, o Congresso é pressionado
para mudar. Seja com o Executivo ou com o Legislativo, o instinto de
sobrevivência política faz o Estado reagir.
Outra forma pelo qual a tensão gerada pelas
crises impacta o ambiente político é por meio de um novo equilíbrio de forças
na sociedade. A literatura econômica mostra que o fechamento de empresas e
postos de trabalho faz com que a maioria, normalmente silenciosa e
descoordenada, ganhe força diante de minorias organizadas, vocais e com
capacidade de mobilização. A irritação social reduz a tolerância com
privilégios e mudar passa a ser uma alternativa melhor que o status quo, ainda
que muitas vezes os benefícios das reformas sejam pouco visíveis e dispersos no
tempo. O custo de não fazer nada supera o de fazer.
Ou seja, o desgaste gerado pelas crises
altera a distribuição de custos e benefícios das reformas, mudando o equilíbrio
entre ganhadores e perdedores. Os grupos negativamente impactados passam a
enfrentar maiores dificuldades para bloquear as mudanças, o que incentiva
acordos e evita que as reformas sejam postergadas, como é a norma em tempos de
tranquilidade. O surpreendente apoio popular à reforma da previdência em 2019
confirma esta tese.
Isso não implica que o papel das lideranças
não seja relevante ou que as reformas ocorram de modo automático. O
comprometimento do governo pode aumentar ou diminuir o custo e o ritmo dos
avanços, da mesma forma que a competência da equipe econômica importa para
traduzir demandas difusas em medidas concretas e de qualidade.
O mais importante, contudo, é que grandes
revisões de regras e políticas públicas dificilmente ocorrem sem crises. A
experiência internacional mostra que reformas são implementadas em momentos
difíceis. Tem sido assim também na história brasileira. As turbulências da
década de 30 e do início dos anos 60 abriram espaço para avanços institucionais
no mercado de trabalho e no sistema financeiro. Da mesma forma, as dificuldades
da década de 80 resultaram em abertura comercial, privatizações, fim da
hiperinflação e construção de um regime de política econômica mais robusto.
No ciclo atual, o descontrole da dívida
pública em 2015 e seus impactos sobre crescimento e emprego incentivaram o
enfrentamento da agenda fiscal. A falta de alternativas, mais que a convicção
ideológica, definiu a pauta de reformas. No limite, são as agendas que escolhem
os governos, e não o contrário.
Se esta avaliação está correta, então faz
sentido dizer que as reformas são um sintoma de crise aguda e não um padrão de
comportamento do sistema político. De fato, a velocidade e a sequência das
mudanças dos últimos anos não é algo normal em sociedades modernas e complexas.
O mais comum é que os custos de mudar
incentivem a inércia e períodos de estabilidade de regras e políticas. É
preciso tempo para que as soluções implementadas no passado sejam avaliadas e o
conhecimento acumulado faça com que novos consensos sejam criados e
alternativas sejam propostas.
Por este aspecto, o quadro atual de rápida
superação da recessão em um contexto de novo ciclo global de crescimento faz
com que o apelo para reformas diminua. Com a economia gradualmente voltando
para seus níveis anteriores à recessão de 2014, é natural que a tensão social e
a mobilização da opinião pública em torno das mudanças se reduzam.
Neste caso, tanto o Estado deverá ser menos
pressionado quanto a resistência dos setores organizados voltará a ganhar
corpo. O sintoma deste novo ambiente já pode ser notado com o menor consenso em
torno da pauta legislativa e as maiores dificuldades de tramitação das reformas
tributária e administrativa. De propostas amplas, o debate migrou para ajustes
menores.
Infelizmente, portanto, ainda que seja
clara a necessidade de continuar melhorando o ambiente de negócios e a eficiência
dos serviços públicos, o preço a ser pago pela superação da crise econômica
parece ser o de encerrar o ciclo de reformas.
*Roberto Padovani é
economista chefe do BV
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