segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Roberto Padovani* - O fim do ciclo de reformas

Valor Econômico

As reformas são um sintoma de crise aguda e não um padrão de comportamento do sistema político

O Brasil viveu, nos últimos cinco anos, um importante ciclo de reformas. A partir de agora, no entanto, a superação da crise faz com que os avanços institucionais voltem a ser lentos e incrementais, como é o padrão. A atual tramitação da reforma tributária é um bom exemplo.

Desde 2016, reformas difíceis e polêmicas têm caminhado mesmo com pandemia, transição política, governos mal avaliados e problemas de coordenação no Congresso. É sempre possível dizer que as mudanças não tiveram o desenho ideal ou a rapidez necessária, mas são raros os momentos na história brasileira com tantos avanços.

Além da limitação constitucional do gasto público e melhorias institucionais no mercado de crédito, foram aprovadas as reformas trabalhista e da previdência, o cadastro positivo, as leis de falências e de licitações, a autonomia do Banco Central e os novos marcos regulatórios do gás e do saneamento. Não é pouca coisa.

Apesar de haver uma tendência natural de se associar a agenda reformista a escolhas pessoais das lideranças políticas, a explicação para este ciclo está na longa e profunda recessão de 2014. A contração acumulada nos anos de 2015 e 2016 foi a maior dos últimos 120 anos, levando a quedas na renda e a dificuldades financeiras das empresas. O resultado foi um claro aumento da tensão social.

Esta tensão impacta o sistema político de duas formas. A primeira é a pressão para que o Estado reaja. A ciência política mostra que a capacidade de o Estado responder às demandas da população é fundamental para se evitar uma crise de legitimidade e governabilidade. Isso porque o desempenho econômico é um critério central para a avaliação dos governos e influencia a competitividade política. Foi a história de 2016 no Brasil.

Ao contrário do que diz o senso comum, o sistema político é guiado pelas preferências do eleitor mediano e responde ao interesse majoritário da sociedade. Justamente porque os políticos pensam sempre nas eleições, o cálculo eleitoral mantém Brasília conectada com as demandas da população. E são nos períodos de turbulência que estas demandas ficam claras ao explicitar problemas, coordenar agendas e alinhar interesses. É o momento em que são criados consensos e a sociedade se convence de que mudanças são necessárias.

Isso significa que ainda que o governo se mostre pouco comprometido com uma agenda de reformas, o Congresso é pressionado para mudar. Seja com o Executivo ou com o Legislativo, o instinto de sobrevivência política faz o Estado reagir.

Outra forma pelo qual a tensão gerada pelas crises impacta o ambiente político é por meio de um novo equilíbrio de forças na sociedade. A literatura econômica mostra que o fechamento de empresas e postos de trabalho faz com que a maioria, normalmente silenciosa e descoordenada, ganhe força diante de minorias organizadas, vocais e com capacidade de mobilização. A irritação social reduz a tolerância com privilégios e mudar passa a ser uma alternativa melhor que o status quo, ainda que muitas vezes os benefícios das reformas sejam pouco visíveis e dispersos no tempo. O custo de não fazer nada supera o de fazer.

Ou seja, o desgaste gerado pelas crises altera a distribuição de custos e benefícios das reformas, mudando o equilíbrio entre ganhadores e perdedores. Os grupos negativamente impactados passam a enfrentar maiores dificuldades para bloquear as mudanças, o que incentiva acordos e evita que as reformas sejam postergadas, como é a norma em tempos de tranquilidade. O surpreendente apoio popular à reforma da previdência em 2019 confirma esta tese.

Isso não implica que o papel das lideranças não seja relevante ou que as reformas ocorram de modo automático. O comprometimento do governo pode aumentar ou diminuir o custo e o ritmo dos avanços, da mesma forma que a competência da equipe econômica importa para traduzir demandas difusas em medidas concretas e de qualidade.

O mais importante, contudo, é que grandes revisões de regras e políticas públicas dificilmente ocorrem sem crises. A experiência internacional mostra que reformas são implementadas em momentos difíceis. Tem sido assim também na história brasileira. As turbulências da década de 30 e do início dos anos 60 abriram espaço para avanços institucionais no mercado de trabalho e no sistema financeiro. Da mesma forma, as dificuldades da década de 80 resultaram em abertura comercial, privatizações, fim da hiperinflação e construção de um regime de política econômica mais robusto.

No ciclo atual, o descontrole da dívida pública em 2015 e seus impactos sobre crescimento e emprego incentivaram o enfrentamento da agenda fiscal. A falta de alternativas, mais que a convicção ideológica, definiu a pauta de reformas. No limite, são as agendas que escolhem os governos, e não o contrário.

Se esta avaliação está correta, então faz sentido dizer que as reformas são um sintoma de crise aguda e não um padrão de comportamento do sistema político. De fato, a velocidade e a sequência das mudanças dos últimos anos não é algo normal em sociedades modernas e complexas.

O mais comum é que os custos de mudar incentivem a inércia e períodos de estabilidade de regras e políticas. É preciso tempo para que as soluções implementadas no passado sejam avaliadas e o conhecimento acumulado faça com que novos consensos sejam criados e alternativas sejam propostas.

Por este aspecto, o quadro atual de rápida superação da recessão em um contexto de novo ciclo global de crescimento faz com que o apelo para reformas diminua. Com a economia gradualmente voltando para seus níveis anteriores à recessão de 2014, é natural que a tensão social e a mobilização da opinião pública em torno das mudanças se reduzam.

Neste caso, tanto o Estado deverá ser menos pressionado quanto a resistência dos setores organizados voltará a ganhar corpo. O sintoma deste novo ambiente já pode ser notado com o menor consenso em torno da pauta legislativa e as maiores dificuldades de tramitação das reformas tributária e administrativa. De propostas amplas, o debate migrou para ajustes menores.

Infelizmente, portanto, ainda que seja clara a necessidade de continuar melhorando o ambiente de negócios e a eficiência dos serviços públicos, o preço a ser pago pela superação da crise econômica parece ser o de encerrar o ciclo de reformas.

*Roberto Padovani é economista chefe do BV

 

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