Folha de S. Paulo
Alt-right e extrema esquerda identificam na
democracia representativa o inimigo a abater
“O
Talibã é uma força conservadora, religiosa; os EUA são ímpios e liberais. A
derrota do governo americano no Afeganistão é, inequivocamente, um evento
positivo.” (Nick Fuentes). “O Talibã é a liderança de uma insurreição popular
contra a intervenção imperialista no Afeganistão. A vitória do
Talibã contra o imperialismo é a vitória de todo o povo oprimido.”
(Partido da Causa Operária, PCO).
Fuentes é um supremacista branco que ajudou
a organizar a invasão
do Capitólio. O PCO é uma seita de extrema esquerda inscrita como
partido no TSE. A paixão compartilhada pelo Talibã revela algo que vai além da
constatação banal de que os extremos se abraçam no fim do arco-íris.
A alt-right, direita alternativa dos EUA, expressa uma revolta contra a direita democrática tradicional. A corrente, contudo, não é nova ou inovadora —nem uma reedição do fascismo ou do nazismo.
Suas raízes estão fincadas no pensamento
ultraconservador, sombrio e pessimista, de figuras como o francês Joseph de
Maistre (1753-1821) e o alemão Oswald Spengler (1880-1936). Sua expressão
política atual é O Movimento, uma organização internacional liderada pelo
ex-assessor de Trump, Steve Bannon, da qual faz parte Eduardo Bolsonaro.
De Maistre, um arauto da reação à Revolução
Francesa, foi um defensor do “trono mais o altar”, ou seja, da monarquia
santificada pela Igreja.
Spengler enxergou nas Luzes, no
imperialismo e na democracia os signos do “declínio do Ocidente”, cuja
civilização entraria em colapso a partir do ano 2000. O desordeiro Fuentes
nunca ouviu falar de nenhum dos dois, mas a gosma ideológica que circula nos
grupos de Telegram da alt-right não passa de um córrego poluído do antigo rio
do romantismo autoritário. É nessa fonte, traduzida por Olavo de Carvalho, que
bebe a ultradireita bolsonarista.
O jornalista Breno Altman, um quadro
político do PT, imagina que o Talibã comandou uma “guerra popular de libertação
nacional”: “Toda derrota do imperialismo estadunidense é bem-vinda, pois o
enfraquece em termos mundiais. Mesmo quando os vitoriosos são uma fração
reacionária como os talibãs.” Ele concorda com o PCO –e, por um desvio mais
longo, também com a alt-right.
Fuentes, um cristão conservador, não se
inclina ao fundamentalismo islâmico do Talibã. Altman, um lulista inflexível,
diverge do Talibã sobre a implantação de uma teocracia no Afeganistão. Mas
ambos identificam na democracia representativa o inimigo a abater.
No 11 de
setembro de 2001, vozes da alt-right e da esquerda celebraram os
atentados da Al Qaeda, interpretando-os como sinalizações da ruína do “Império
Americano”. Duas décadas depois, pelo mesmo motivo, comemoram a queda de Cabul.
Altman e o PCO não se nutrem da tradição
ideológica que informa a alt-right. A visão de mundo dessa esquerda ancora-se
no marxismo vulgar da Guerra Fria, orientado pela noção de que o inimigo
principal é o “imperialismo americano”.
Sob tal ótica, a “democracia burguesa”
seria apenas um disfarce adotado por elites econômicas submissas ao Império. A
URSS, no passado, e regimes como o da China, de Cuba e da Venezuela, hoje,
formariam os contrapontos ao poder global dos EUA –e, portanto, deve-se
classificar como “evento positivo” qualquer derrota “imperialista”.
O poder do Talibã é “mais legítimo que o do
último governo afegão ou do atual governo dos EUA”, tuitou Matt Gaetz, deputado
republicano pela Flórida e um fiel inabalável de Trump, no rastro do 15 de
agosto.
A alt-right e a “esquerda
anti-imperialista” partilham a crença de que são soldados no Exército da
História. Eles não têm o menor interesse pelos afegãos realmente existentes,
submetidos à tirania fundamentalista, pelas mulheres convertidas em utensílios
domésticos ou pelas suas filhas proibidas de ir à escola. Tudo que lhes importa
é parir uma utopia redentora.
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