sábado, 18 de setembro de 2021

Demétrio Magnoli - Paixão pelo Talibã

Folha de S. Paulo

Alt-right e extrema esquerda identificam na democracia representativa o inimigo a abater

 “O Talibã é uma força conservadora, religiosa; os EUA são ímpios e liberais. A derrota do governo americano no Afeganistão é, inequivocamente, um evento positivo.” (Nick Fuentes). “O Talibã é a liderança de uma insurreição popular contra a intervenção imperialista no Afeganistão. A vitória do Talibã contra o imperialismo é a vitória de todo o povo oprimido.” (Partido da Causa Operária, PCO).

Fuentes é um supremacista branco que ajudou a organizar a invasão do Capitólio. O PCO é uma seita de extrema esquerda inscrita como partido no TSE. A paixão compartilhada pelo Talibã revela algo que vai além da constatação banal de que os extremos se abraçam no fim do arco-íris.

A alt-right, direita alternativa dos EUA, expressa uma revolta contra a direita democrática tradicional. A corrente, contudo, não é nova ou inovadora —nem uma reedição do fascismo ou do nazismo.

Suas raízes estão fincadas no pensamento ultraconservador, sombrio e pessimista, de figuras como o francês Joseph de Maistre (1753-1821) e o alemão Oswald Spengler (1880-1936). Sua expressão política atual é O Movimento, uma organização internacional liderada pelo ex-assessor de Trump, Steve Bannon, da qual faz parte Eduardo Bolsonaro.

De Maistre, um arauto da reação à Revolução Francesa, foi um defensor do “trono mais o altar”, ou seja, da monarquia santificada pela Igreja.

Spengler enxergou nas Luzes, no imperialismo e na democracia os signos do “declínio do Ocidente”, cuja civilização entraria em colapso a partir do ano 2000. O desordeiro Fuentes nunca ouviu falar de nenhum dos dois, mas a gosma ideológica que circula nos grupos de Telegram da alt-right não passa de um córrego poluído do antigo rio do romantismo autoritário. É nessa fonte, traduzida por Olavo de Carvalho, que bebe a ultradireita bolsonarista.

O jornalista Breno Altman, um quadro político do PT, imagina que o Talibã comandou uma “guerra popular de libertação nacional”: “Toda derrota do imperialismo estadunidense é bem-vinda, pois o enfraquece em termos mundiais. Mesmo quando os vitoriosos são uma fração reacionária como os talibãs.” Ele concorda com o PCO –e, por um desvio mais longo, também com a alt-right.

Fuentes, um cristão conservador, não se inclina ao fundamentalismo islâmico do Talibã. Altman, um lulista inflexível, diverge do Talibã sobre a implantação de uma teocracia no Afeganistão. Mas ambos identificam na democracia representativa o inimigo a abater.

No 11 de setembro de 2001, vozes da alt-right e da esquerda celebraram os atentados da Al Qaeda, interpretando-os como sinalizações da ruína do “Império Americano”. Duas décadas depois, pelo mesmo motivo, comemoram a queda de Cabul.

Altman e o PCO não se nutrem da tradição ideológica que informa a alt-right. A visão de mundo dessa esquerda ancora-se no marxismo vulgar da Guerra Fria, orientado pela noção de que o inimigo principal é o “imperialismo americano”.

Sob tal ótica, a “democracia burguesa” seria apenas um disfarce adotado por elites econômicas submissas ao Império. A URSS, no passado, e regimes como o da China, de Cuba e da Venezuela, hoje, formariam os contrapontos ao poder global dos EUA –e, portanto, deve-se classificar como “evento positivo” qualquer derrota “imperialista”.

O poder do Talibã é “mais legítimo que o do último governo afegão ou do atual governo dos EUA”, tuitou Matt Gaetz, deputado republicano pela Flórida e um fiel inabalável de Trump, no rastro do 15 de agosto.

A alt-right e a “esquerda anti-imperialista” partilham a crença de que são soldados no Exército da História. Eles não têm o menor interesse pelos afegãos realmente existentes, submetidos à tirania fundamentalista, pelas mulheres convertidas em utensílios domésticos ou pelas suas filhas proibidas de ir à escola. Tudo que lhes importa é parir uma utopia redentora.

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