sábado, 18 de setembro de 2021

Ascânio Seleme - Mourão não é Temer, nem bobo

O Globo

Vice-presidente tem a confiança dos militares e está pronto para assumir o país e disposto a fazer os acordos necessários, desde que legítimos, legais e transparentes

O vice-presidente Hamilton Mourão aprendeu muito nesses últimos dois anos e meio. Circulou entre os grandes da Câmara e do Senado, recebeu e visitou presidentes e ministros de todos os tribunais superiores, fez algumas parcerias na Esplanada dos Ministérios. Envernizou de política seu perfil militar. Mesmo assim, apesar do intensivão, ainda está anos-luz de distância de seu antecessor no cargo, o ex-presidente, ex-vice e ex-deputado Michel Temer. Se tivesse metade da ardileza de Temer, Mourão hoje estaria ocupando o principal gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto.

Por crime menor do que os cometidos por Jair Bolsonaro, Michel Temer ajudou a construir o impeachment de Dilma Rousseff e herdou mais da metade do seu segundo mandato. A falta de habilidade de Mourão não facilita movimentos no Congresso em favor de um impeachment. Faz parte da regra do jogo saber exatamente com o que vai se contar após o afastamento de um titular do cargo. Foi assim com Temer, todos sabiam o que viria. Foi assim com Itamar Franco, com menos certezas, no impedimento de Fernando Collor.

Mas, o vice aprende rápido. É um homem inteligente, pelo menos 23 vezes mais inteligente do que Bolsonaro, e aos poucos vai se articulando. Ele tem conversado reservadamente com empresários, com políticos, com jornalistas, com estrategistas e analistas políticos. Ele ouve mais do que fala nessas incursões que em última análise podem levá-lo do anexo ao prédio principal do Palácio. Mas não deixa de dar seus recados. Quando chamado a falar, mostra que bobo não é. Tergiversa e, eventualmente, tenta mostrar lealdade ao presidente, apesar de este já o ter rifado publicamente.

“Não há clima para impeachment”, disse o vice no dia 7 de setembro, torcendo para o titular do cargo pisar mais uma vez nas dezenas de cascas de banana que ele próprio, o presidente, vai jogando no caminho por onde passa. O que acabou ocorrendo, claro. Mas, oficialmente, é assim que se deve agir. O exemplo de Temer é clássico. Nem mesmo quando viu o Palácio torpedear e fazer pouco caso do seu projeto “Ponte para o Futuro”', que pretendia ser a salvação do governo Dilma, deu sinais de desconforto. Afinal, como bom cabrito, ele sabia que nessas horas não se pode berrar.

Mourão tampouco pisa em calos alheios, mesmo nos dos políticos menos relevantes do Rio, onde tem sua base eleitoral e para onde deverá voltar se Bolsonaro conseguir terminar o seu mandato. Ele já sabe que não será candidato na chapa do presidente para a reeleição. Terá, então, de buscar um mandato se quiser continuar na política. Apesar de ser bem avaliado no Rio e ter pesquisas indicando que bateria facilmente o atual mandatário fluminense numa eleição para o governo estadual, se recusa a afirmar que quer a vaga. Mostrar humildade também foi outra lição que o general aprendeu bem depressa.

O problema para Bolsonaro é que não ter a astúcia de Temer pode ajudar Mourão num outro flanco importante no governo, o militar. Generais não gostam de malandragem, têm certa implicância com políticos e, erroneamente, julgam que todos estão aí exclusivamente para se dar bem. O governo Bolsonaro já deveria ter sepultado esta impressão, uma vez que a gestão de militares mostraram que a capacidade de fazer estrago não é exclusividade dos políticos. Mesmo assim, eles ficariam mais confortáveis com Hamilton Mourão no comando do que, suponhamos, com Janaína Paschoal. Aliás, o erro de Bolsonaro foi não ter insistido com Janaína Paschoal. Maluquete por maluquete, melhor ficar com o que já se conhece.

O fato é que Mourão está pronto para assumir o país e disposto a fazer os acordos necessários, desde que legítimos, legais e transparentes, para atender as demandas de deputados e senadores. Ele entende que estes são representantes legítimos do povo e como tal devem ser tratados. Suas reivindicações, sendo honestas, atendem anseios populares. O vice está a postos, só falta informar a todos de maneira mais clara, mesmo que no escurinho dos bastidores, que o caminho pode desaguar nele tranquilamente. E ser ouvido.

O que ainda falta?

Associadas, as três grandes notícias da quinta-feira mostram que não falta mais nada para um pedido de impeachment do presidente Bolsonaro avançar no Congresso. A primeira reitera o caráter maléfico do presidente. Torpedear a vacinação de adolescentes, indo contra todas as orientações científicas, incluídas as da OMS e da Anvisa, é criminoso. A segunda, aumentar o IOF para turbinar o Bolsa Família, deteriora mais o apoio já minoritário que tem entre empresários. Depois, as novas pesquisas Datafolha provam que há clima para encaminhar o processo de afastamento. Sua popularidade caiu depois do Sete de Setembro, e 53% dos brasileiros julgam seu governo ruim ou péssimo. Na enquete eleitoral, Bolsonaro perde para todos os seus concorrentes no segundo turno. Somente Arthur Lira não vê.

Temer vem aí

Aliás, é melhor Arthur Lira ficar esperto. O ex-presidente Michel Temer pode muito bem concorrer e ganhar uma vaga na Câmara dos Deputados. E, neste caso, terá estatura, simpatia e voto na casa para ocupar o cargo que Lira gostaria de manter.

Estátua de comitês

Foi David Ogilvy, um dos maiores publicitários de todos os tempos, que produziu a frase: “Procure em todos os parques da sua cidade, você não vai encontrar nenhuma estátua de comitês”. Nos tempos brasileiros atuais, seria mais ou menos como erigir um monumento para a frente que se quer desenhar para construir a terceira via. Frentes não lideram, quem mobiliza são pessoas, estas que ficam para a história. Foi assim nos grandes momentos da humanidade, de Jesus Cristo a Mao Tsé-Tung. Por isso também fracassou a manifestação anti-Bolsonaro do dia 12. Muitas lideranças, nenhuma liderança.

Armas

Jair Bolsonaro pode ser novamente derrotado no Supremo Tribunal Federal, agora na questão da legalidade dos decretos que ampliam a venda e o porte de armas e aumentam os limites para a aquisição de munição. O problema é que esta será sobre projeto de governo do presidente, que foi eleito tendo esta como uma das suas principais plataformas. Será mais do que uma derrota, será uma humilhação.

O PT tinha razão

Você pode dizer que o PT se escondeu quando sua presença era mais importante, que a sua ausência esvaziou as manifestações do dia 12, que o partido não quer o impeachment de Bolsonaro porque sem ele a eleição de 2022 fica muito complicada para o Lula. Você pode dizer também que a hora era de união nacional, que depois do Sete de Setembro todos deveriam ir às ruas contra o golpista, que o PT é sectário e troca uma aliança nacional contra um dos maiores perigos nacionais por um projeto eleitoral. Você certamente terá razão em quase todas as suas afirmações, mas uma coisa você não pode negar: não dava para o PT subir em palanque adornado com a faixa “Nem Bolsonaro, nem Lula”. Não era possível imaginar Lula de mãos dadas com Kim Kataguiri com o pixuleco atrás. O PT nem sempre tem razão, mas nesse caso tinha.

Base ideológica

A turma mais radical que apoia incondicionalmente o presidente Jair Bolsonaro não se interessa por questões programáticas, se lixa para a velocidade com que caminha a economia e pouco se importa com vacinação ou auxílio emergencial. Ela já provou que não esta nem aí para o Brasil. Seu único e obcecado objetivo é ver o mito tomar o poder, fechar o Supremo e o Congresso, governar por decreto e baixar a porrada. Se perguntarem a um dos seus membros para que quer o poder, ele não vai saber responder. Vai dizer que é para acabar com a roubalheira, ou o comunismo, ou ambos. Mas então, peça-lhe um caminho, um projeto. Você nada ouvirá.

Maria oi João?

Uma querida leitora escreveu para recomendar que eu não use mais a expressão “maria-vai-com-as-outras”, que empreguei na semana passada para identificar os apoiadores de Bolsonaro que seguem a boiada sem entender bem por que razão. Sugeriu que usasse “joão-vai-com-os-outros,” para não ser sexista e não ofender as mulheres, já que usei o termo “abjetas” para definir aquelas “marias”'. Como não era esta a minha intenção, achei conveniente publicar esta nota. Poderia dar uma de “joão-sem-braço”, mas aí estaria errando outra vez.

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