sábado, 15 de janeiro de 2022

Carlos Alberto Sardenberg: A vacina é legal

O Globo

Os canadenses da província de Québec deram a maior bandeira: o número de vacinados com a primeira dose disparou depois que o governo local baixou a regra segundo a qual o cidadão só poderia comprar álcool e maconha apresentando o passaporte da vacina. Note-se: lá a maconha é legal até para “fins recreativos”, ou seja, para um baseado.

Não vai aqui nenhuma crítica aos moradores de Québec, mesmo porque, certamente, é a minoria que consome bebidas e a erva. Ok, pode ser uma minoria expressiva, não importa. O objetivo é mostrar como os governos pelo mundo têm sido criativos na tarefa de estimular ou mesmo forçar a vacinação.

Ainda em Québec, o primeiro-ministro François Legault avalia cobrar um imposto dos não vacinados. Argumenta que eles adoecem mais e transmitem a Covid-19 a um número maior de pessoas, tudo isso sobrecarregando a rede pública de saúde. Logo, como geram mais gasto público, devem pagar por isso.

O mesmo princípio foi adotado pelo primeiro-ministro da Alemanha, o social-democrata Olaf Scholz, quando sugeriu que a vacina deveria ser obrigatória para todos os adultos. De novo, os não vacinados geram custos públicos e sociais. A medida vai a debate no Parlamento.

O princípio é o seguinte: liberdade e direitos individuais têm limites. O cidadão não pode recusar a vacina e sair por aí infectando os outros, sobrecarregando a rede de saúde. Simples assim: se o exercício de um suposto direito individual fere o direito dos outros e prejudica a sociedade, então prevalece o direito dos outros e da sociedade.

A Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou uma portaria do presidente Biden que impunha regras para as empresas com mais de cem empregados. Pela norma, a empresa deveria exigir certificado de vacina dos funcionários. Os que se recusassem deveriam fazer teste semanalmente.

A decisão foi por seis votos a três, claramente dividida entre juízes conservadores e progressistas, estes lá chamados de liberais. Os conservadores valorizam mais os direitos individuais, e os progressistas o interesse coletivo e social. A decisão, entretanto, baseou-se num argumento, digamos, técnico. O presidente não teria o poder de baixar aquela portaria sem autorização do Congresso.

Certo, mas o debate nos EUA não raro cai nesse ponto. O cidadão tem o direito de escolher entre vacinar-se ou não?

A resposta totalmente correta seria esta: tem o direito, mas o não vacinado por opção não pode circular onde cause o risco de transmitir o vírus. E, se ficar doente, os custos do tratamento não serão cobertos pelo setor público nem pelos seguros privados.

A questão está longe de ser atual. No Brasil, já houve uma revolta sangrenta contra a obrigatoriedade da vacina da varíola, em 1904.

A lei foi suspensa, mas um novo surto de varíola no Rio levou a população a correr aos postos de vacinação. Hoje, os brasileiros mostram forte adesão às vacinas e, por isso, entre outros motivos, desaprovam cada vez mais o presidente Bolsonaro e seu ridículo negacionismo.

Mas, como subsistem aqui e ali resistências à vacina, é preciso criar regras que forcem a imunização.

Governos estão empenhados nisso, mas também estabelecimentos privados. Nas estações de esqui na Suíça, segundo me conta um conhecido, bares e restaurantes adotaram a seguinte regra: o cliente tem de fazer o teste rápido, fornecido, e cobrado, pelo estabelecimento antes de entrar. Se deu positivo, está fora. Negativo, está dentro. O que foi pago pelo teste é descontado na conta.

Simples, não é mesmo? O teste é de fácil aplicação, o resultado sai na hora. Aliás, eis mais um argumento a favor da liberação do autoteste e da ampla distribuição e comercialização dos testes.

O prefeito Eduardo Paes gostou da regra de Québec, assim meio de brincadeira. Poderia adotá-la.

Não se pode dizer que ir ao bar seja um direito sagrado do ser humano — embora muitos pensem assim. Negar a entrada para os positivados não configura violação de direitos. Vale como exemplo: estimular e/ou forçar a vacinação é legal.

 

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