Célebre poema foi traduzido e se tornou mundialmente conhecido como arma contra a ditadura
O Globo
Morreu na manhã desta sexta-feira (14) aos
95 anos, o poeta, tradutor e ensaísta amazonense Thiago de Mello, de causas
naturais. Ele faleceu em casa, em Manaus. O velório ocorrerá no Palácio Rio
Negro, Centro Histórico de Manaus, às 14h. Segundo a família do autor, o
enterro está previsto para o sábado de manhã, em horário ainda a ser definido.
Nascido em Barreirinha, no Amazonas, em 30
de março de 1926, Mello foi um dos grandes poetas de sua geração. Traduzido em
mais de 30 idiomas e com 70 anos de produção literária, ele trabalhou como
editor, jornalista e diplomata.
Um de seus poemas mais famosos é "Os
estatutos do homem (Ato Institucional Permanente)". Escrito após o golpe
de 1964, é uma resposta ao mesmo tempo singela e poderosa ao Ato Constitucional
I. O decreto tinha como objetivo afastar qualquer forma de oposição e legitimar
o regime, possibilitando a cassação de mandatos legislativos, a suspensão de
direitos políticos e o afastamento de servidores públicos.
Mello respondeu com um ato insitucional
poético e "permanente" de 14 artigos. Já no primeiro anunciava:
"Fica decretado que agora vale a verdade/ agora vale a vida, e de
mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira". E, no Artigo Final:
"A partir deste instante/ a liberdade será algo vivo e transparente/ como
um fogo ou um rio,/ e a sua morada será sempre/ o coração do/ homem."
Traduzido por Pablo
Neruda, que foi um dos grandes amigos de Mello, o poema se tornou
mundialmente conhecido como arma contra a ditadura.
Após o decreto, Mello renunciou ao posto de
adido cultural no Chile, cargo que ocupava na época. Ele voltaria ao Brasil
para combater a ditadura em 1965, mas acabaria preso logo após descer do avião.
Em novembro daquele ano, participou de uma manifestação de intelectuais em
frente ao hotel Glória, no Rio, durante a abertura da II Conferência
Extraordinária da Organização dos Estados Americanos (OEA), na qual falaria o
presidente Castello Branco.
O ato, que ficou conhecido como "os oito da Glória", resultou na prisão de Glauber Rocha, Carlos Heitor Cony e Joaquim Pedro de Andrade, entre outros. Mello escapou, mas acabou se apresentando às autoridades em seguida. Ele foi libertado após um mês.
Apesar de ter mobilizado um grupo pequeno, a manifestação atraiu a atenção de repórteres e causou grande repercussão. O episódio levou os militares a fortalecerem o cerco a artistas e intelectuais no país.
Quatro anos depois, o poeta entrou para a
clandestinidade, após seu envolvimento com o Movimento Nacionalista
Revolucionário (MNR). Mais uma vez, exilou-se no Chile, onde ficou até a
ascensão de Augusto Pinochet, em 1973. Mello traduziu para o português o Nobel
de Literatura Pablo Neruda, com quem conviveu no Chile.
Outro conhecido poema de Mello é "Faz
escuro, mas eu canto, / Porque a manhã vai chegar", publicado em "A
madrugada camponesa" (1965). Os versos inspiraram a 34º Bienal de Sâo
Paulo, de 2020, que homenageou o poeta.
'Um dos maiores poetas da nossa história'
Amigo de Mello, o escritor Milton Hatoum descreveu
o autor dos “Estatutos do homem” ao GLOBO como alguém “generosos” e
“esperançoso” e que, justamente por não temer o regionalismo, tornou-se um
poeta universal.
— A obra de Thiago tem duas vertentes, a
social e a lírico-amorosa. Ambas são águas de um mesmo grande rio — explica
Hatoum. — Ele nunca teve medo de usar expressões muito amazônicas em seus
versos, como nomes de pássaros e de frutas. Não tinha medo de ser regionalista.
E de fato não era. Conseguiu ser universal porque tinha paixão pelo lugar onde
vivia.
Hatoum lembra que Mello foi pioneiro da
defesa do meio ambiente e dos povos indígenas e, de cabeça, cita os versos
finais do poema “A terra traída”, incluído no livro “Acerto de contas”, de
2015: “quando queimam a mata, enlouquecidos de pavor, os pássaros se esquecem
dos seus cantos”. Hatoum destaca “A terra traída” como um dos pontos altos da
carreira de Mello, poeta de versos límpidos que dominava como poucos a métrica.
“Acerto de contas” reúne poemas sobre
o amor, a natureza e homenagens a amigos de Mello, como os poetas Carlos
Drummond de Andrade e João Cabral
de Mello Neto, o ambientalista Chico Mendes e a ex-ministra do Meio
Ambiente Marina Silva.
Há também um poema inspirado em “Relato de um
certo Oriente”, romance premiado de Hatoum.
— Thiago teve uma trajetória bonita como
cidadão e poeta — diz Hatoum, que lembra que, nos últimos anos, Mello andava
melancólico com a “barbárie” que tomou conta de Manaus. — Mas o que fica é a
gratidão pela amizade dele. As coisas que Thiago mais prezava eram a poesia, a
amizade e a natureza.
Escritores e políticos foram às redes
sociais lamentar a morte de Mello. "O lorde Thiago de Mello nos
deixou...Deixou? Não. Deixou saudades. Deixou poesia. Deixou sonhos. Deixou
esperanças. Deixou a lembrança de que 'Faz escuro, mas eu Canto'", tuitou
o escritor indígena Daniel
Munduruku. "Sua ausência faz escuro...Sua arte, nos traz
Luz."
O escritor gaúcho Fabrício
Carpinejar publicou, no Facebook, um poema em homenagem a
Mello, intitulado "Estatuto do poeta". "Fica decretado hoje o
luto das árvores, das pedras, dos barcos no Amazonas. Ninguém pode entrar na
floresta — a brisa está em carne viva. Ninguém pode pescar — os
peixes estão chorando e subindo a maré. Acabou de partir para o infinito um dos
maiores poetas da nossa história, Thiago de Mello, 95 anos, traduzido por
Neruda, conhecido em mais de trinta idiomas", escreveu. "Não se morre
mais depois de ler um poema de Thiago de Mello."
A Global Editora, que publica a obra do autor,
também se manifestou nas redes sociais. "É hora de celebrar seu legado e
se apoioar no seu llirismo para manter sua memória viva", afirmou no
Instagram.
Em nota, o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva lamentou a morte do poeta, "cuja palavra ganhou o mundo pelo seu
talento, sua sensibilidade com a vida e com a luta pela Amazônia. "Hoje
faz escuro, mas nós seguiremos cantando e lutando para construir um Brasil
melhor. Meus sentimentos ao familiares, amigos e admiradores de Thiago de
Mello. Sua obra não será esquecida", afirmou o ex-presidente.
O governador do Amazonas Wilson Lima e o
prefeito de Manaus David Almeida, decretaram luto oficial de três dias pelo
falecimento do poeta.
Engajamento pela Amazônia
Ao longo da carreira, Mello publicou as
coletâneas poéticas "Poesia comprometida com a minha e a tua vida"
(1975), "Mormaço na floresta" (1984), "Num campo de
margaridas" (1986) e "Acerto de contas" (2015), que ele
considerava uma espécie de testamento da sua obra. Também é autor dos ensaios
"Arte e ciência de empinar papagaio" (1983), "Amazonas, pátria
da água" (1990) e "O povo sabe o que diz" (1993), entre outros.
Em 2018, ele foi homenageado como Personalidade Literária do Ano pela Câmara
Brasileira do Livro (CBL) no Prêmio Jabuti.
Mello morou ainda na Argentina, em Portugal, na França e na Alemanha. Após o exílio na Europa, em 1978, voltou a Barreirinhas, sua cidade natal. Em 2017, o poeta passou a sofrer ameaças de morte de caboclos após denunciar as atividades ilegais da madeireira holandesa EcoBrasil Holanda-Andirá, na localidade. Nos últimos anos, ele vinha enfrentando os sintomas do Alzheimer e outros problemas de saúde.
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