O Globo
Para atingirmos a realidade de Europa ou
EUA, esses testes teriam de estar disponíveis em abundância, de forma gratuita
ou muito barata
Era 31 de dezembro. Minha família, como
muitas outras, estava reunida para o fim do ano. A cada dois dias, vínhamos
testando todos na casa com autotestes de Covid-19 importados. Eis que, logo no
dia de réveillon, um de meus familiares testou positivo.
Posteriormente, um teste laboratorial
confirmaria seu diagnóstico positivo; mas a pessoa se isolou imediatamente.
Testamos o resto da família nos dias seguintes — e ninguém mais se contaminou.
Quando soube do resultado, liguei para uma
pessoa que tinha sido exposta no dia anterior. Ela estava na estrada, viajando
para ver sua própria família. Parou numa farmácia e fez um teste. Deu positivo.
Tomou o caminho de volta e não colocou sua família em perigo.
Embora seja somente um caso particular, minha experiência ilustra o poder do acesso a testes rápidos para Covid-19. Possivelmente evitamos muitas contaminações somente por causa disso.
Por que a maioria das famílias brasileiras
não têm acesso a autotestes, como a minha? Porque, no momento em que escrevo,
os autotestes ainda não são regulamentados no Brasil.
Só é possível fazer um teste para Covid-19
no Brasil por meio de um profissional da saúde — como um farmacêutico ou um
técnico laboratorial. Nos Estados Unidos, posso comprar autotestes de antígeno
no supermercado e levá-los para casa, usando quando for necessário. Custam
cerca de US$ 10 (0,4% do salário mínimo da Califórnia).
Em Portugal e noutros países da Europa,
estão disponíveis por € 4 (0,6% do salário mínimo em Portugal). Na Inglaterra,
são distribuídos gratuitamente pelo governo.
Aqui no Brasil, o mesmo teste usado para
autotestes é aplicado por farmácias. Por causa dos custos extras, menor escala
e menor competição, acabam saindo mais caro: entre R$ 75 e R$ 100 (6% a 8% do
salário mínimo brasileiro), inacessível para boa parte da população.
Nesta semana, O GLOBO noticiou que o
Ministério da Saúde pedirá a aprovação do uso de autotestes à Anvisa.
Quarta-feira, a Anvisa declarou que ainda não tinha recebido pedido formal para
liberação dos autotestes, que ainda dependeria de outros estudos.
Em resposta a uma indagação que fiz, o
ministério informou que “a pasta estuda as especificidades dos autotestes para
avaliar a implantação deste tipo de exame no país”. Disse ainda que não havia,
até o começo da semana, nenhum processo na Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias no SUS (Conitec).
Autotestes não são perfeitos. Uma crítica a
seu uso é que podem gerar um número importante de falsos negativos, seja por
erro do usuário ou pior performance em relação ao teste laboratorial.
Mas isso só é problema se o comportamento
padrão for ficar em casa para tudo — e o falso negativo induzir pessoas a
saírem de casa. À medida que as restrições se reduzem, o comportamento padrão
passa a ser sair de casa. Um teste positivo impede alguém de sair, enquanto um
negativo só mantém o status
quo. Autotestes funcionam como mecanismos de prevenção.
No fim, a conveniência de uso não é questão
puramente científica, mas uma análise de custo-benefício. A Anvisa da União
Europeia afirmou num estudo que autotestes “reduzem a transmissão comunitária
ao permitir o rápido isolamento de casos infecciosos”.
Autotestes são vistos pelos especialistas
de lá como uma barreira que altera o comportamento no caso de teste positivo.
Por enquanto, as autoridades brasileiras têm enfatizado mais os riscos que
potenciais benefícios.
Dado esse cenário, o que o governo poderia
fazer? Se queremos nos aproximar da realidade da Europa ou dos EUA, o objetivo
seria que esses testes estivessem disponíveis em abundância, de forma gratuita
ou muito barata.
Além de regulamentar o autoteste, o governo
poderia ajudar a reduzir o preço de mercado com uma combinação de redução de
impostos e política industrial. Isenção de impostos de importação e ICMS podem
reduzir o preço na ponta.
A garantia de compra de centenas de milhões
de testes pelo SUS, com adiantamento do pagamento, poderia incentivar
fabricantes locais a ampliarem suas linhas de produção e reduzirem o custo
unitário. Ao contrário de outras políticas setoriais, nessa há menos incerteza
sobre o benefício, já que evitar infecções tem impactos econômicos claros.
Individualmente, o autoteste já ajudou a
reduzir a transmissão entre minha família e amigos. Sendo liberado e
incentivado no Brasil, outras famílias poderiam ter o mesmo privilégio.
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