sábado, 15 de janeiro de 2022

Demétrio Magnoli: Putin, o cálculo do fraco

Folha de S. Paulo

Com a Ucrânia, chefão do Kremlin quer evitar um exemplo para a Belarus e para os próprios russos

Cerca de 100 mil militares russos cercam a Ucrânia, ao leste, norte e sul. Gestos valem mais que palavras. A ameaça de invasão, óbvia, mas negada pela diplomacia de Moscou, vai acompanhada por um ultimato: os EUA devem oferecer, no mínimo, garantia legal de que a Ucrânia jamais será admitida na Otan. Diante da exigência impossível, assoma a pergunta: qual é o plano oculto de Putin?

Na aurora da Guerra Fria, a Finlândia firmou o tratado de 1948 com a URSS que impediu seu alinhamento geopolítico com os EUA. "Finlandização": o termo passou a descrever a neutralidade forçada de um Estado soberano. Putin exige a "finlandização" da Ucrânia, não por meio de um acordo bilateral, mas por um tratado com os EUA. A resposta negativa não surpreendeu ninguém. De outro modo, Washington estaria limitando a soberania ucraniana.

Otan não incorporará a Ucrânia no horizonte previsível, pois rejeita herdar o conflito interno provocado pelo controle separatista da região de Donbass. Mais que a adesão à aliança militar ocidental, Putin teme o espectro de um Estado ucraniano próspero e democrático. O chefão do Kremlin almeja evitar o surgimento de um exemplo para Belarus e, sobretudo, para os próprios russos. O "inimigo interno", não o externo – eis o ponto.

A hipótese de invasão não emana da força, mas da fraqueza estrutural da Rússia. A economia russa, que equivale à soma da França com a Holanda, assenta-se sobre exportações de combustíveis fósseis. O tempo opera contra Putin. Mas qual é o curso de ação correto?

A opção militar minimalista é a ocupação do Donbass por tropas russas e a anexação formal da pequena região separatista à Rússia, no modelo aplicado à Crimeia. A transformação da fronteira militar interna em fronteira política internacional seria, porém, um equívoco fatal. Sem a guerra crônica contra milícias apoiadas por forças especiais russas, a Ucrânia estaria livre para aderir à Otan, o que garantiria a segurança de suas novas fronteiras. Putin perderia o conflito congelado que assegura sua influência sobre o futuro da nação vizinha.

A opção maximalista é a ocupação do conjunto da Ucrânia. A operação militar duraria poucas semanas, em virtude da superioridade absoluta das forças russas.

Contudo, é patente a inviabilidade de manter indefinidamente a ocupação de uma nação hostil de 41 milhões de habitantes, similar à do Iraque ou do Afeganistão. Putin, um líder que sabe fazer cálculos, nem mesmo contemplaria um cenário dessa natureza.

Sobra, entretanto, uma assustadora opção intermediária, capaz de abalar os fundamentos da arquitetura de segurança da Europa. A Rússia tem a oportunidade de ocupar todo o leste ucraniano, até o rio Dnieper, além da faixa litorânea sul, privando-a de Odessa e saídas ao mar Negro. São regiões ucranianas que abrigam, predominantemente, populações russófonas. Haveria prolongada resistência porque, para uma vasta maioria, a identidade nacional tem valor maior que a pertinência linguística. Mesmo assim, a aventura teria mais chance de sucesso que a desvairada hipótese de ocupação completa.

Em 1949, a Alemanha foi cindida em dois Estados separados pela Cortina de Ferro. No fim, quatro décadas depois, o Muro caiu e a Alemanha Ocidental incorporou a fracassada Alemanha Oriental. Putin pode, porém, acreditar que a Ucrânia se desviaria do roteiro alemão.

Hoje, os EUA concentram-se na rivalidade global com a China. Sem uma Guerra Fria, Washington carece dos incentivos geopolíticos que geraram o Plano Marshall e o compromisso estratégico sintetizado na criação da Otan. Kiev, ao contrário de Berlim, ficaria só: a bipartição destruiria a frágil economia ucraniana e secaria o solo no qual se tenta semear uma democracia europeia.

Um cálculo desse tipo pode revelar-se certo ou errado. Mas, antes, acenderia a centelha de uma catástrofe.

 

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