Folha de S. Paulo
Com a Ucrânia, chefão do Kremlin quer
evitar um exemplo para a Belarus e para os próprios russos
Cerca de 100 mil militares russos cercam a
Ucrânia, ao leste, norte e sul. Gestos valem mais que palavras. A ameaça de invasão, óbvia, mas negada pela diplomacia
de Moscou, vai acompanhada por um ultimato: os EUA devem oferecer, no mínimo,
garantia legal de que a Ucrânia jamais será admitida na Otan. Diante da
exigência impossível, assoma a pergunta: qual é o plano oculto de Putin?
Na aurora da Guerra Fria, a Finlândia firmou o tratado de 1948 com a URSS que impediu seu alinhamento geopolítico com os EUA. "Finlandização": o termo passou a descrever a neutralidade forçada de um Estado soberano. Putin exige a "finlandização" da Ucrânia, não por meio de um acordo bilateral, mas por um tratado com os EUA. A resposta negativa não surpreendeu ninguém. De outro modo, Washington estaria limitando a soberania ucraniana.
A Otan não
incorporará a Ucrânia no horizonte previsível, pois rejeita herdar o conflito
interno provocado pelo controle separatista da região de Donbass. Mais que a
adesão à aliança militar ocidental, Putin teme o espectro de um Estado
ucraniano próspero e democrático. O chefão do Kremlin almeja evitar o
surgimento de um exemplo para a Belarus e,
sobretudo, para os próprios russos. O "inimigo interno", não o
externo – eis o ponto.
A hipótese de invasão não emana da força,
mas da fraqueza estrutural da Rússia. A economia russa, que equivale à soma da
França com a Holanda, assenta-se sobre exportações de combustíveis fósseis. O
tempo opera contra Putin. Mas qual é o curso de ação correto?
A opção militar minimalista é a ocupação do
Donbass por tropas russas e a anexação formal da pequena região separatista à
Rússia, no modelo aplicado
à Crimeia. A transformação da fronteira militar interna em fronteira
política internacional seria, porém, um equívoco fatal. Sem a guerra crônica
contra milícias apoiadas por forças especiais russas, a Ucrânia estaria livre
para aderir à Otan, o que garantiria a segurança de suas novas fronteiras.
Putin perderia o conflito congelado que assegura sua influência sobre o futuro
da nação vizinha.
A opção maximalista é a ocupação do
conjunto da Ucrânia. A operação militar duraria poucas semanas, em virtude da
superioridade absoluta das forças russas.
Contudo, é patente a inviabilidade de
manter indefinidamente a ocupação de uma nação hostil de 41 milhões de
habitantes, similar à do Iraque ou do
Afeganistão. Putin, um líder que sabe fazer cálculos, nem mesmo
contemplaria um cenário dessa natureza.
Sobra, entretanto, uma assustadora opção
intermediária, capaz de abalar os fundamentos da arquitetura de segurança da
Europa. A Rússia tem a oportunidade de ocupar todo o leste ucraniano, até o rio
Dnieper, além da faixa litorânea sul, privando-a de Odessa e saídas ao mar
Negro. São regiões ucranianas que abrigam, predominantemente, populações
russófonas. Haveria prolongada resistência porque, para uma vasta maioria, a
identidade nacional tem valor maior que a pertinência linguística. Mesmo assim,
a aventura teria mais chance de sucesso que a desvairada hipótese de ocupação
completa.
Em 1949, a Alemanha foi cindida em dois
Estados separados pela Cortina de Ferro. No fim, quatro décadas depois, o Muro
caiu e a Alemanha Ocidental incorporou a fracassada Alemanha Oriental. Putin
pode, porém, acreditar que a Ucrânia se desviaria do roteiro alemão.
Hoje, os EUA concentram-se na rivalidade
global com a China. Sem uma Guerra Fria, Washington carece dos incentivos
geopolíticos que geraram o Plano Marshall e o compromisso estratégico
sintetizado na criação da Otan. Kiev, ao contrário de Berlim, ficaria só: a
bipartição destruiria a frágil economia ucraniana e secaria o solo no qual se
tenta semear uma democracia europeia.
Um cálculo desse tipo pode revelar-se certo
ou errado. Mas, antes, acenderia a centelha de uma catástrofe.
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