O Globo
Raras vezes, nos Estados Unidos, a
democracia foi tão evocada e invocada como no primeiro aniversário do assalto
ao Capitólio — a bicentenária sede do Poder Legislativo em Washington que fora
dessacralizada em 6 de janeiro de 2021. A homenagem às vítimas da fúria dos
insurretos, que pretendiam reverter pela força a derrota de Donald Trump nas
urnas, durou quase o dia todo. Idealizada para servir de ponto de confluência
nacional em torno da defesa da democracia, a cerimônia emocionou muitos e
consolou outros tantos. Mas o dano histórico continua do mesmo tamanho. A
saber, abissal.
Tome-se o discurso do presidente Joe Biden, que, pela primeira vez em sua longeva carreira pública pautada pela moderação, conseguiu se fazer ouvir. Falou duro e claro, em tom de rara visceralidade. Aos 79 anos, o “conciliador em chefe” finalmente pareceu ter acordado para a realidade: a radiação antidemocrática com que Donald Trump continua a contaminar o país e as instituições a partir de sua base em Mar-a-Lago precisa ser enfrentada. “Pela primeira vez em nossa história, um presidente não apenas perdeu uma eleição, mas tentou impedir a transferência pacífica do poder”, discursou Biden. Denunciou “aqueles que invadiram o Capitólio e os que incitaram a invasão”. Prometeu defender a nação “dos que apontam um punhal para a garganta da democracia americana”. De caso pensado, não citou Trump nominalmente, trincando o egocentrismo doentio do antecessor. “Ele não é apenas um ex-presidente. É um ex-presidente derrotado”, disse Biden, com arroubo extra na palavra “derrotado”.
Fossem outros os tempos, essas mesmas
palavras soariam como tediosa retórica. Hoje, ano 5 do Trumpocênio, adquirem
relevância para quem se inquieta com o perceptível desgaste do viver
democrático mundial. A invasão do Capitólio pode não ter conseguido impedir a
diplomação de Joseph Biden como 46º presidente dos EUA, mas permitiu a Donald
Trump dar uma amostra de sua força sem freios legalistas. Mas convém não
atribuir o assalto protofascista do 6 de janeiro apenas a esse vilão consagrado
e a seu círculo de gurus trevosos. Muito além da horda que invadiu, atacou,
saqueou, matou e defecou no histórico Capitólio, o país tem hoje 57% da
população que acredita na ocorrência de novos ataques semelhantes ao de 2021, e
apenas 55% aceitam que a vitória eleitoral de Biden é legítima, aponta pesquisa
Axios-Momentive realizada há poucos dias.
Tem mais. Quase 100 milhões de adultos do
país concordam que “o tradicional modo de vida do americano está desaparecendo
tão rápido que podemos ter de usar a força para preservá-lo”. No Partido
Republicano, hoje avassalado por Trump, esse segmento representa nada menos que
40% dos filiados, segundo levantamento recente do jornal Washington Post.
Com tal pano de fundo, não espanta que
analistas, acadêmicos, jornalistas e curiosos em geral tenham se interessado
pelo recém-lançado “How civil wars start” (Como começam as guerras civis, em
tradução literal), da cientista política Barbara F. Walter, da Universidade da
Califórnia. O título, intencionalmente ou não, parece remeter a outro livro —o
sucesso de público e de crítica “Como as democracias morrem”, de Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt (2018). Mas, enquanto a obra dos dois professores de
Harvard analisava a ascensão ao poder de Donald Trump, o livro de Walter, uma
ex-analista da CIA, lida com a gênese de guerras civis. No caso dos Estados
Unidos, a enraizada crença nacional no excepcionalismo americano impede o país
de conceber a possibilidade de um colapso político dentro de suas fronteiras.
Segundo uma complexa métrica de 21 pontos, a autora situa os Estados Unidos
numa espécie de limbo democrático, com o Partido Republicano se comportando
como uma facção predatória das instituições republicanas.
Não resta dúvida de que a insurreição do 6
de janeiro, apesar de fracassada, acabou se tornando um ponto de união entre a
direita radical e a liderança do partido que já foi de Abraham Lincoln. Passado
um ano, os participantes na invasão são saudados como mártires por muitos
integrantes do Grand Old Party (GOP). Aderir à versão de fraude na vitória de
Biden tornou-se um teste de lealdade para vereadores, deputados e senadores
domesticados por Trump. Lealdade canina, que desafia qualquer racionalidade. E
sem freios.
À exceção da deputada Liz Cheney, que participou do evento acompanhada do pai come-abelha Dick Cheney, nem um único senador ou deputado do Partido Republicano compareceu à homenagem às vítimas do 6 de janeiro — 2022 começa mal para a democracia nos Estados Unidos.
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