Se assimilada de modo ligeiro, a
argumentação da jornalista pode ser considerada como expressão de uma dada posição
política. Dessa posição – não de “fatos” – resultariam possibilidades que ela
continua vendo para a abertura de uma terceira via eleitoral. Esse repto
caberia também à visão que venho expondo neste espaço há um ano. Por isso ao
interceder em favor de que se preste atenção à dimensão analítica do artigo de
Kramer estou simultaneamente defendendo um ponto de vista desta coluna.
Penso que é um erro supor que haja correspondência direta entre análise de conjuntura e análise de cenários possíveis. Embora conectados, os dois procedimentos analíticos são bem distintos e uma das principais distinções está no modo como cada um deles considera o papel da ação política. Na análise de conjuntura os atores têm peso morto, por assim dizer. O que fizeram ou deixaram de fazer é fato consumado, ou já em curso, que cabe simplesmente registrar, sem se esperar que possam ser alterados. Contra isso nada podem o desejo, as crenças, os valores, ou os raciocínios lógicos do analista. Na análise de cenários, muito pelo contrário, o que distingue a análise política de outras é a consideração primordial que ela precisa dispensar à incerteza própria da presença de diversos atores, com diferentes visões, propósitos e modos de agir, compondo cenas sequenciadas de um enredo de desfecho ignorado. A democracia só faz acentuar esse requerimento que se impõe a quem analisa cenários futuros de política. Num regime democrático – mesmo quando ele vigora numa sociedade com fraca cultura democrática – a imprudência analítica não está na admissão de múltiplas possibilidades alternativas e sim na escassez delas. Vaticínios antecipados são a morada mais comum de vieses desejosos.
A polarização entre Lula e Bolsonaro ocupa,
na análise de cenários, o lugar nobre da hipótese mais provável. Isso decorre
da sua até aqui sólida e indisputada evidência na análise de conjuntura. Cessam
aí as certezas porque a cada momento a própria conjuntura, ao mudar, pode
desafiar o evidente. Vejamos por exemplo o que ocorre com o problema sanitário.
Vencida a difícil batalha pela aceleração e ampliação da vacinação - com mais
uma exuberante demonstração de vitalidade do SUS e da nossa comunidade científica,
do poder decisório resiliente de estados e municípios, da manutenção de certo
ânimo do Senado em frear e contrapesar as manobras escapistas do Executivo, da
capacidade de conscientização e mobilização da imprensa e do senso de
participação de segmentos da sociedade civil - nove entre dez analistas
previam, durante os últimos meses de 2021, que, aos poucos, esse assunto,
satisfatoriamente encaminhado, passaria a lugar secundário na agenda
político-eleitoral, cedendo a vez à crise econômica e social. Essa convicção
foi se impondo de tal modo que minimizou os sinais emitidos pelo Ministério da Saúde
de que permanecia na contramão desses esforços, assim como não se viu todas as
implicações da defecção da Câmara dos Deputados. A maioria daquela Casa vem
sendo justamente criticada, dos pontos de vista político e ético, pelas atitudes
de baixo espírito público que assumiu em 2021, mas nem sempre foram devidamente
avaliados os efeitos concretos desse déficit de liderança e mesmo de
cooperação do Poder Legislativo no combate ao quadro sanitário. De freio e
contrapeso ao Executivo, a Câmara, sob a batuta de Artur Lira, passou a elo central
de uma coalizão reacionária cujo sentido, mais e antes que sustentar o
presidente, é apropriar-se do governo, com outras prioridades.
Acontece que uma sucessão de eventos -
interrupção do site do Ministério da Saúde, ação do mesmo Ministério para
retardar e mesmo sabotar a vacinação infantil, erupção de surtos de gripe grave
e de uma nova variante da Covid – está a gritar por reconsideração desse
diagnóstico político. A análise de cenários, na nova conjuntura em que o ano de
2022 se inicia, passa a incluir a concreta possibilidade de que uma coalizão política
tenha que se reunir para não se perder de novo o controle da peleja sanitária. Se
após a reversão das ameaças golpistas de setembro, parecia ter se dado start
numa campanha eleitoral de dinâmica centrífuga, com protagonistas definidos
e partidos coadjuvantes resignados em lutar por mera sobrevivência política,
podemos voltar agora a encarar a imperiosidade e conveniência políticas de
alimentar um movimento centrípeto. Não que as crises econômica e social tenham
perdido peso relativo na agenda, mas o agravamento da situação sanitária fixa
nova conjuntura, pela gravidade sanitária em si e por se tornar, ela própria, um
fator de aprofundamento das outras duas crises.
Se for razoável essa análise de conjuntura,
estará dado um quadro geral que pode se constituir em baliza incontornável aos
movimentos dos atores políticos. O efeito combinado de descontrole sanitário,
da exacerbação da pobreza e da vulnerabilidade social, de deterioração dos
indicadores e expectativas da economia e da desconstrução institucional do
Estado (da qual a ocorrida na saúde pública, embora seja a mais dramática e
abertamente criminosa, está longe de ser exceção), pode estar traçando grandes
linhas sociais com potencial de imprimir, pelo seu caráter agudo e inexorável, novos
rumos ao processo político-eleitoral. Essa compreensão desautoriza, por si
mesma, a ideia de que o futuro, mesmo imediato, pode ser pensado a partir de “dados”.
Ele depende do que virá, mais do que daquilo que há.
A quem se apresse a associar a
interpretação acima a uma
aposta no quanto pior melhor, respondo que o pior já foi evitado com as
bem-sucedidas mobilizações política e civil contra a pandemia e o golpismo. O
que não nos autoriza a considerar ambas as faturas liquidadas. Trouxe aqui à
consideração uma delas, que mostra sua recalcitrância a quem não quer vendar os
olhos. Deixo de lado a outra, a recalcitrância golpista, não por crê-la
definitivamente arquivada, mas para que deixemos a cada dia a sua agonia.
O que se pode pensar, a partir dessa
conjuntura tangível, como porção estável de cenários incertos, é que os atores
políticos, nas várias arenas em que atuam (inclusive a pré-eleitoral), terão
que levar em conta esses fatores designados, deles não tendo como escapar. Mas
o espaço que se abre à iniciativa política é largo, pois tem como medida a
incerteza intrínseca a esses processos “cegos”. Chicos e franciscos serão constrangidos por
eles e flertará com o fracasso quem os ignorar ou sublimar. Mas chicos e
franciscos não estão obrigados, por uma imaginária lei de ferro da política, a
se comportarem previsivelmente. A política, por ter balizas num mundo que vai
além dela, não está condenada a ser mero reflexo do social, ou de uma suposta
“índole” dos seus atores. A inteligência da política não é reflexiva, mas
inventiva, sem que invenção seja obra de uma razão que trafegue na contramão
dos fatos. Esses contam e muito, mas há fatos e fatos. Os que equivalem, em
importância, à inteligência política - e por isso podem orientá-la e cultivá-la
- são aqueles que já se tornaram, de algum modo, uma tradição. Fatos como, por
exemplo, o método da conciliação política e nossa vocação a ser um ocidente. Evidências
conjunturais, ainda mais de conjunturas voláteis como as atuais, descumprem essa
condição.
*Cientista político
e professor da UFBa.
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