O Globo
Um dos elementos mais insidiosos da
propaganda de guerra russa é a acusação de que o governo
ucraniano está tomado por nazistas. A resposta à pergunta do título acima é
simples: não, o governo da Ucrânia não é nazista. Apesar disso, a existência de
um regimento da Guarda Nacional, o Batalhão Azov, composto de neonazistas e
supremacistas brancos, deveria ser motivo de preocupação, tanto porque mostra
condescendência do Estado ucraniano com ideais execráveis como por oferecer
apoio à propaganda de Vladimir Putin.
O Batalhão Azov se formou nos desdobramentos das manifestações populares de 2013 e 2014 chamadas Euromaidan, contra as ações anti-União Europeia e pró-Rússia do governo, que terminaram derrubando o presidente ucraniano Viktor Yanukovich.
Quando os protestos contra o governo
começaram a sair do controle, em janeiro de 2014, Yanukovich aprovou uma dura
lei antiprotestos, que resultou numa repressão violenta e deixou quase cem
mortos. Quando o Estado reagiu com violência, grupos neonazistas tomaram a
frente dos manifestantes, tornando-se as lideranças de fato nas batalhas de
rua.
Sob forte pressão, Yanukovich fugiu para a
Rússia, temendo o impeachment e acusações criminais. Após a fuga do presidente,
e alegando um golpe de Estado, separatistas de etnia russa na região da Crimeia
e nas regiões de Donetsk e Luhansk declararam independência. A Rússia terminou
anexando a Crimeia em março, e uma guerra foi deflagrada nas duas regiões do
leste do país.
Foi nesse contexto que grupos neonazistas e
supremacistas brancos convertidos em paramilitares se reuniram no Batalhão Azov
para combater o separatismo pró-russo. O Estado ucraniano, reconhecendo a
debilidade das suas Forças Armadas, terminou incorporando grupos paramilitares
voluntários, como o Azov, na Guarda Nacional. Uma reportagem do Washington Post de 2017 sugeriu que esse
arranjo foi estabelecido devido à grande determinação das tropas voluntárias e
porque lutavam sem gerar custos previdenciários para o Estado.
Nos anos que separam o começo da guerra de
baixa intensidade contra os separatistas pró-Rússia em 2014 da invasão russa de
2022, o Azov se converteu num hub internacional
de movimentos supremacistas brancos. Em diversos países, militantes racistas de
extrema direita foram chamados a lutar na Ucrânia contra os separatistas para
ganhar treinamento prático militar e depois difundir essa experiência de
combate em seus grupos locais. Essa estratégia é semelhante à do Estado
Islâmico, que recrutava voluntários em diversos países para ganhar experiência
de combate na Síria. Em 2016, uma célula do Azov no Rio Grande do Sul foi
desbaratada pela Polícia Civil tentando levar neonazistas gaúchos para a
Ucrânia.
Supremacistas brancos também foram
recrutados para lutar com o Exército russo, já que Putin é visto em alguns
círculos de extrema direita como um defensor do tradicionalismo branco.
Um estudo publicado em 2019 estimou que 17 mil voluntários
de mais de 50 países foram recrutados para lutar na Ucrânia, nos dois lados do
conflito, a maioria com os russos.
Desde o início do conflito na região de
Donetsk e Luhansk, a Rússia tem usado o Azov em sua propaganda, distorcendo seu
tamanho e seu papel nas Forças Armadas ucranianas. Estudiosos estimam o tamanho
do batalhão entre mil e 1.500 homens, divididos em diversas unidades, mas a
propaganda russa o apresenta como se fosse a maior parte do Exército do país
(as Forças Armadas ucranianas tinham antes da guerra um contingente estimado em
210 mil soldados). É dessa distorção que deriva o objetivo alegado por Putin de
“desnazificar” a Ucrânia.
Um número mostra a influência real do Azov
no país: seu braço político, o Partido do Corpo Nacional, teve 2% dos votos e
não conseguiu eleger um único parlamentar nas últimas eleições, em 2019. O
próprio fato de o atual presidente, Volodymyr Zelensky, ser judeu — com um
bisavô e três tios-avôs assassinados pelos nazistas — e de ter reparado
omissões históricas na memória do Holocausto em seu país não parece evidência
forte o suficiente para barrar a difusão da propaganda russa.
O governo da Ucrânia faz muito mal em
manter o Azov entre suas forças oficiais. O batalhão tem sido útil no esforço
de guerra para conter o separatismo, mas ao custo de gerar endosso político e
apoio militar e financeiro a agrupamentos supremacistas brancos. Nada disso,
porém, dá sustentação à propaganda barata do imperialismo russo de que as
Forças Armadas ou o governo de Zelensky sejam nazistas.
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