O Globo
A foto de Lynsey Addario é dramática. No
primeiro plano, dois soldados estão agachados, checando a vítima mais próxima
deles, um homem estirado no chão com sangue no nariz. Logo depois, outras três
pessoas mortas estão espalhadas na calçada, um adolescente, sua irmã de nove
anos e a mãe de ambos. Ao fundo, um homem passa, com ar apressado, certamente
com medo, sem olhar para a cena macabra. O menino tem sua mochila azul ainda
presa nas costas. Diante do corpo da mãe, uma mala com o que ela conseguiu
reunir para fugir. A foto foi para a primeira página do jornal “The New York
Times” de terça-feira, assim como o relato de Addario sobre o massacre que
testemunhou.
Todos sabiam que aqueles eram civis evacuando. Era muito visível, mesmo desde a posição onde estavam os soldados russos, disse a jornalista ao podcast “The Daily”, do NYT. Addario via pelas lentes de sua câmera que famílias tentavam fugir de Irpin para Kiev através de um resto de ponte que havia sobrevivido a um bombardeio feito pelos próprios ucranianos para impedir o avanço das tropas invasoras. O ataque contra aqueles civis foi deliberado. Um vídeo produzido pela equipe do jornal mostra as pessoas caminhando em fila e em seguida a explosão. Alguns escaparam, menos Tatiana, de 43 anos, e seus filhos Nikita, de 18, e Alissa, de 9. A quarta vítima era um voluntário que os ajudava a escapar.
No dia seguinte, dez pessoas
foram mortas pela artilharia russa numa fila para comprar pão na cidade de
Chernihiv. Todos civis. Mais tarde, um teatro que servia de refúgio para 500
mulheres e crianças foi bombardeado por aviões russos, apesar do aviso
gigantesco escrito no chão, dos dois lados do edifício, de que ali havia
crianças. Ao longo dos últimos dias, os alvos dos soldados de Vladimir Putin
são prioritariamente civis. Inúmeros prédios residenciais estão sendo
bombardeados e destruídos em Kiev, Mariupol, Kherson e outras cidades
ucranianas. Impossível precisar o número de inocentes mortos. Segundo a ONU,
780 civis, sendo 64 crianças, morreram na guerra. Volodymyr Zelensky diz serem
milhares e que só de crianças já foram mais de cem. Em Mariupol, há corpos
abandonados nas ruas, e outros estão sendo enterrados em valas comuns.
O fato é que o
massacre promovido por Putin na Ucrânia mudou o discurso de alguns analistas,
comentaristas e pitaqueiros que tentavam explicar, ou até justificar, a invasão
russa à Ucrânia. O primeiro argumento, que via uma guerra por posições
militares, virou pó junto com as vítimas civis bombardeadas pelos russos. Os
militares de Putin, aparentemente, não têm armas, nem tecnologia e competência
para conduzir uma guerra cirúrgica, atacando apenas alvos militares. Suas ações
são violentas e cruéis, com objetivos aleatórios. O que se vê diariamente na
Ucrânia são crimes de guerra que um dia deverão ser julgados.
O segundo argumento tem
cheiro de mofo, remonta à guerra fria. Trata-se da afirmação de que a Rússia
estava ameaçada pelo fato de a Ucrânia se aproximar da União Europeia e
pleitear um assento na Organização do Atlântico Norte. Bobagem. Participar da
UE daria vantagens econômicas à Ucrânia. E por que não? Já com relação à Otan,
alguém hoje em dia ainda imagina, sinceramente, que com a entrada da Ucrânia a
organização militar poderia invadir a Rússia ou ameaçar de outra forma o país
que tem 6 mil ogivas nucleares prontas para serem disparadas?
Este velho discurso
também estava sendo usado pelos que se opõem politicamente aos Estados Unidos,
ao capitalismo e a uma certa hegemonia ocidental. Nesse caso, o defensor dos
valores anticapitalistas seria a Rússia? Ou a China? Francamente. Para
satisfazer este raciocínio deveria ainda existir o comunismo. Mas este já
desapareceu. Para quem acha que a China é comunista, basta dizer que quando o
primeiro lockdown foi levantado em Guangdong, uma loja da Hermès num shopping
da cidade faturou US$ 2,7 milhões em um único dia. No comunismo, ninguém teria
dinheiro para fazer compras na loja de luxo francesa. Moscou, por sua vez, tem
três concessionárias Rolls-Royce. Quantas dessas você conhece no Rio de
Janeiro? Só uma, e ela conserta aparelho de ar condicionado no centro da
cidade.
Vale o quanto pesa?
Cresce entre muitos analistas políticos a
sensação de que Bolsonaro voltou a ser competitivo, depois de ter passado
alguns meses como um cadáver insepulto. Eles têm bons argumentos para apontar
nesta direção. Primeiro, o presidente cresceu entre dois e três pontos nas
pesquisas das duas últimas semanas, enquanto Lula estacionou. Depois, começou a abrir o saco de bondades com
bolsa emergencial, antecipação de 13º para aposentados e pensionistas,
afrouxamento das regras para liberação de FGTS, facilitação de crédito
consignado e, quem sabe, subsídio para combustíveis. Importa observar, contudo,
que os crescimentos nas pesquisas foram todos na margem de erro. Depois,
bondade só ganha eleição se for eficiente. Com desemprego e inflação recorde,
se diluem. É bom também analisar o resultado eleitoral de 2018, quando Fernando
Haddad obteve 44,87% dos votos, mesmo tendo sido lançado apenas um mês antes do
primeiro turno. Àquela altura, seu partido esfregava o nariz no fundo do poço:
Lula estava preso, Dilma amargava quase três anos de afastamento e PT era
sinônimo de corrupção. Por outro lado, Bolsonaro, o mito, não catalisava tanta
rejeição e ódio como agora.
Leite esparramado
É interessante a movimentação do governador
do Rio Grande do Sul por uma vaga na disputa presidencial. Eduardo Leite não
desiste. A percepção dos que o acompanham e assessoram é que quanto mais ele
ficar em evidência, melhor para qualquer outro salto que queira dar caso sua
candidatura não decole. Leite ocupa todos os dias espaço nos noticiários de TVs
e rádios, as
melhores páginas políticas dos jornais, os blogs mais
acessados do colunismo nacional e tem amplo trânsito nos tuítes e nas postagens
de jornalistas e formadores de opinião. Trata-se de um jogo em que ele só
ganha, mesmo perdendo.
Tiro no pé
Não fosse a ministra Rosa Weber, o Senado
daria um enorme tiro no pé ao estabelecer prazo de três meses para prestar
contas do mal afamado orçamento secreto. Em três meses, ou julho,
estaremos em plena
campanha eleitoral. O efeito da revelação dos gastos que agora
se quis negar ao contribuinte poderia causar grandes prejuízos eleitorais mais
adiante justamente aos que hoje escondem os números.
Marielle
Há quatro anos não se descobre quem mandou
matar Marielle Franco por incompetência
ou má vontade da polícia, ou por interferência política
nas investigações. Enquanto isso, vem aí mais uma onda sobre o assassinato do
prefeito Celso Daniel, do PT de Santo André. Alguém tem dúvida de que outra vez
vai-se acusar o PT e petistas pela morte do político? Daniel foi assassinado há
20 anos. Documentário da Globoplay, que ouviu todos os lados das investigações
e todos os envolvidos, não deixa dúvida que foi um crime comum. Mas, grande
coisa, para que existem as fake news, não é mesmo?
31 de março
Não haverá o que comemorar no dia 31 de
março. Ao contrário, a data deveria ser consagrada como dia nacional de repulsa às ditaduras. Hoje,
um grupo de pessoas vai às ruas festejar os 58 anos da Marcha da Família com
Deus pela Liberdade. Já naquela época usava-se o nome de Deus em vão. A famosa
marcha foi o primeiro passo para o golpe de 1964, dado por generais insurretos
alguns dias depois. Sua lembrança também deveria ser repudiada.
Vacinação e ignorância
O que acontece com a terra de José Sarney?
Enquanto São Paulo tem mais de 86% da população acima de cinco anos vacinada, no
Maranhão são apenas 61%. Há outros estados com números abaixo dos 70%.
Levantamento feito pela Lancet mostra que cidades que mais apoiaram Bolsonaro
em 2018 têm taxa de mortalidade de Covid maior. Enquanto isso, há gente tomando
agora a primeira dose da vacina apenas
porque precisa da carteirinha de vacinação para arrumar
emprego ou entrar em alguns estabelecimentos.
O feito Putin
A invasão bárbara de Vladimir Putin à Ucrânia conseguiu um feito inédito, unir os americanos que estavam divididos politicamente desde a derrota de Donald Trump. E pode, também, melhorar os índices do inimigo Joe Biden. Por outro lado, Putin está dividindo seu próprio país, perseguindo dissidentes, a quem chama de “escória de traidores”, prometendo purificar a Rússia, caçando e cuspindo “falsos patriotas”. Um exemplo de que a coisa vai mal na Rússia foi o discurso que fez ontem num estádio lotado de simpatizantes. Numa cerimônia plastificada e falsa, o déspota desfiou mais uma vez seu rosário de mentiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário