sábado, 19 de março de 2022

Paulo Sternick*: A marca da maldade em Putin

O Globo

O mundo ficou assombrado ao finalmente perceber, à frente de uma potência nuclear, um criminoso operando dentro de um chefe de Estado. Em Putin, a teimosa e sinistra obsessão megalomaníaca de restaurar a “Grande Rússia” — sob pretexto de garantir a defesa de uma soberania nem sequer ameaçada — provoca outra guerra cruel. Desafiando os limites da razão, ele não mostra capacidade de admitir erros ou fazer autocrítica. Ditador em seu país, quer tirar de seus vizinhos o direito às próprias escolhas, em nome de uma delirante e paranoica geopolítica enterrada no século passado. Nem parece real, e sim um filme de terror. A perplexidade diante desse anacronismo histórico é tal, que muitos supõem que ele ficou louco.

O diagnóstico é controverso. A começar pelo simples fato de que é impossível saber a verdade a respeito da mente de um mentiroso. Há apenas uma certeza sobre seu tipo: ele é, desde a juventude, um delinquente, um perigoso mau-caráter. Um sádico que fez carreira na KGB. Convém-lhe agora, porém, o oportuno rótulo de maluco. Infunde mais temor às suas ameaças e produz uma assimetria moral com o Ocidente. Com o dedo no gatilho nuclear, negando friamente os riscos de ser retaliado, paralisa militarmente os aliados da Ucrânia e os mantém como reféns de sua chantagem atômica. Lembra algum terrorista fanático?

Quase ninguém acreditou — exceto o serviço secreto americano — que ele realmente passaria ao ato (acting-out), invadiria e torpedearia o país vizinho. Na psicanálise, diz-se que alguém faz um acting-out (um surto psicótico é um exemplo extremo) quando executa uma ação cuja origem é um estado mental que poderia ter sido contido, pensado e modificado, em vez de causar danos fora. Mas Putin é daquelas pessoas para quem a ordem interior é para não recuar na compulsão para a maldade contra quem vê como inimigos. Só se sentirá culpado se fizer o contrário. Não ser implacável é, para ele, ser fraco.

Putin tem o tipo de inteligência ardilosa, a argúcia cínica, mais apta para a desconfiança e o conflito do que inclinada para a harmonia e o diálogo construtivo. Se for para rotular, é um paranoico. Executa o que diz que seus adversários fariam. Homofóbico e machista, narcisista e exibicionista, apoia políticos da estirpe de Marine Le Pen, Matteo Salvini, Viktor Orbán, Donald Trump e Jair Bolsonaro — todos ligados à extrema direita nacionalista e tradicionalista. Diga-me com quem andas, que eu te direi quem és. Olho no olho, no primeiro encontro em 2011, Joe Biden disse que não conseguia enxergar em Putin uma alma.

Ao bombardear de forma injustificada civis ucranianos, despreza a vida humana: as pessoas são bonecos de um tabuleiro geopolítico, um mero jogo de War. Como bem salientou Adam Tooze: “Se quisermos entender o que aconteceu no Kremlin, para precipitar a loucura criminosa da invasão, não precisamos de chavões sobre os dilemas de segurança das grandes potências”. Aqui, a teoria “realista” das relações internacionais atingiu seu ponto máximo de descrédito.

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, indagou: “O que realmente a Rússia (Putin) está buscando? Trata-se de abordar de forma prática preocupações legítimas de segurança que todos temos? Ou é reconstituir o Império Soviético, ou, fora isso, reafirmar uma esfera de influência, ou, fora isso, ‘finlandizar’ os países a seu redor? Se é disso que estamos falando, não há muito com que trabalhar”.

Marina Arutyunyan, uma psicanalista de Moscou, disse, bem antes da guerra, existir em seu país uma “sociedade traumatizada e uma forte pulsão de morte coletiva”. Sintoma do que ocorre a partir do Kremlin? Os russos saberão se livrar de Putin. E o mundo, manter a sabedoria de não se deixar arrastar pela mediocridade do realismo geopolítico, que — baseado na pior versão da natureza humana — normaliza e até legitima a guerra, as lutas por segurança territorial e recursos, as mortes inúteis por causas obscuras e fanáticas. Mas, como diria Freud, há cura pela palavra.

*Psicanalista

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