O Globo
O mundo ficou assombrado ao finalmente
perceber, à frente de uma potência nuclear, um criminoso operando dentro de um
chefe de Estado. Em Putin, a teimosa e sinistra obsessão megalomaníaca de
restaurar a “Grande Rússia” — sob pretexto de garantir a defesa de uma
soberania nem sequer ameaçada — provoca outra guerra cruel. Desafiando os
limites da razão, ele não mostra capacidade de admitir erros ou fazer
autocrítica. Ditador em seu país, quer tirar de seus vizinhos o direito às
próprias escolhas, em nome de uma delirante e paranoica geopolítica enterrada
no século passado. Nem parece real, e sim um filme de terror. A perplexidade
diante desse anacronismo histórico é tal, que muitos supõem que ele ficou
louco.
O diagnóstico é controverso. A começar pelo simples fato de que é impossível saber a verdade a respeito da mente de um mentiroso. Há apenas uma certeza sobre seu tipo: ele é, desde a juventude, um delinquente, um perigoso mau-caráter. Um sádico que fez carreira na KGB. Convém-lhe agora, porém, o oportuno rótulo de maluco. Infunde mais temor às suas ameaças e produz uma assimetria moral com o Ocidente. Com o dedo no gatilho nuclear, negando friamente os riscos de ser retaliado, paralisa militarmente os aliados da Ucrânia e os mantém como reféns de sua chantagem atômica. Lembra algum terrorista fanático?
Quase ninguém acreditou — exceto o serviço
secreto americano — que ele realmente passaria ao ato (acting-out), invadiria e
torpedearia o país vizinho. Na psicanálise, diz-se que alguém faz um acting-out (um surto psicótico
é um exemplo extremo) quando executa uma ação cuja origem é um estado mental
que poderia ter sido contido, pensado e modificado, em vez de causar danos
fora. Mas Putin é daquelas pessoas para quem a ordem interior é para não recuar
na compulsão para a maldade contra quem vê como inimigos. Só se sentirá culpado
se fizer o contrário. Não ser implacável é, para ele, ser fraco.
Putin tem o tipo de inteligência ardilosa,
a argúcia cínica, mais apta para a desconfiança e o conflito do que inclinada
para a harmonia e o diálogo construtivo. Se for para rotular, é um paranoico.
Executa o que diz que seus adversários fariam. Homofóbico e machista,
narcisista e exibicionista, apoia políticos da estirpe de Marine Le Pen, Matteo
Salvini, Viktor Orbán, Donald Trump e Jair Bolsonaro — todos ligados à extrema
direita nacionalista e tradicionalista. Diga-me com quem andas, que eu te direi
quem és. Olho no olho, no primeiro encontro em 2011, Joe Biden disse que não
conseguia enxergar em Putin uma alma.
Ao bombardear de forma injustificada civis
ucranianos, despreza a vida humana: as pessoas são bonecos de um tabuleiro
geopolítico, um mero jogo de War. Como bem salientou Adam Tooze: “Se quisermos
entender o que aconteceu no Kremlin, para precipitar a loucura criminosa da
invasão, não precisamos de chavões sobre os dilemas de segurança das grandes
potências”. Aqui, a teoria “realista” das relações internacionais atingiu seu
ponto máximo de descrédito.
O secretário de Estado americano, Antony
Blinken, indagou: “O que realmente a Rússia (Putin) está buscando? Trata-se de
abordar de forma prática preocupações legítimas de segurança que todos temos?
Ou é reconstituir o Império Soviético, ou, fora isso, reafirmar uma esfera de
influência, ou, fora isso, ‘finlandizar’ os países a seu redor? Se é disso que
estamos falando, não há muito com que trabalhar”.
Marina Arutyunyan, uma psicanalista de
Moscou, disse, bem antes da guerra, existir em seu país uma “sociedade
traumatizada e uma forte pulsão de morte coletiva”. Sintoma do que ocorre a
partir do Kremlin? Os russos saberão se livrar de Putin. E o mundo, manter a
sabedoria de não se deixar arrastar pela mediocridade do realismo geopolítico,
que — baseado na pior versão da natureza humana — normaliza e até legitima a
guerra, as lutas por segurança territorial e recursos, as mortes inúteis por causas
obscuras e fanáticas. Mas, como diria Freud, há cura pela palavra.
*Psicanalista
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