Folha de S. Paulo
Papagaios de Putin que procuram com lupa
neonazistas ucranianos praticam o duplipensar
Os papagaios brasileiros de Putin,
alvoroçados antes da invasão, calaram-se depois que as forças russas,
incapazes de alcançar seus objetivos militares, engajaram-se no vandalismo,
bombardeando edifícios residenciais, hospitais e abrigos de civis. Contudo, a
algazarra retornará no minuto seguinte à eventual cessação de hostilidades. Vai
aí, então, uma descrição das vertentes principais do discurso putínico de
justificação da guerra de agressão.
1. "A Rússia nasceu
em Kiev –e, portanto, a Ucrânia não é uma nação legítima mas um fragmento da
Mãe Rússia". O argumento do "Putin historiador", extraído dos
anais clássicos do chauvinismo grão-russo, caberia na voz de um czar. Por aqui,
circula livremente entre professores universitários.
De fato, Ucrânia e Rússia nasceram juntas. No plano puramente lógico, seria possível virar o argumento putínico ao avesso para postular que a Rússia não passa de uma extensão da "Mãe Ucrânia". Curioso –e um tanto melancólico– é constatar que os acadêmicos dispostos a ecoar a falácia histórica putínica rejeitam, corretamente, a justificação bíblica para o controle de Israel sobre o conjunto da Terra Santa.
2. "A operação militar especial russa
destina-se à desnazificação da Ucrânia".
A lenda de uma Ucrânia submetida à hegemonia nazista, verdade oficial russa,
ganhou tração nas redes sociais e, sob formas disfarçadas, na imprensa
brasileira. O argumento sustenta-se, apenas, nas muletas da ignorância.
A Ucrânia tem um sistema político plural,
competitivo, com eleições livres. O partido da direita ultranacionalista
Svoboda obteve 2% dos votos e uma solitária cadeira parlamentar nas eleições
ucranianas. Há quase 20 anos, o Svoboda expulsou os grupelhos neonazistas que o
frequentavam. Uma facção minoritária neonazista participa da milícia Batalhão
Azov, que apoiou a campanha eleitoral do Svoboda.
Os papagaios de Putin que procuram com lupa
neonazistas ucranianos praticam o duplipensar. Eles jamais se recordam de que
diversos partidos da extrema-direita europeia bebem na fonte (às vezes, nas
finanças) do chefe do Kremlin.
3. "A Rússia defende a sua segurança
nacional, evitando a adesão da Ucrânia à Otan". O argumento da moda,
disseminado tanto pela esquerda petista quanto pela direita bolsonarista, tem a
finalidade de desviar a responsabilidade pela guerra ao "imperialismo americano"
ou ao "globalismo liberal".
A expansão da Otan merece exame crítico,
que precisaria abranger o abandono ocidental do governo reformista russo de
Yeltsin, no início da década de 1990. Mas não se pode atribuir a ela a agressão
russa, pois a pretensão ucraniana de integrar a Otan foi congelada desde 2014.
Mais: a Otan comprometeu-se com a Rússia,
em 1997, a não deslocar forças significativas ou armas nucleares ao território
de seus novos integrantes. A obrigação foi honrada. Inexistia o risco, alegado
por Lula, de estabelecimento de bases militares americanas na Ucrânia.
A barbárie desencadeada na Ucrânia
desmoralizou os discursos putínicos explícitos, gerando duas novas variantes,
menos letais mas muito mais infecciosas. A primeira inspira-se no pacifismo; a
segunda, no identitarismo.
De acordo com a variante
"pacifista", "não há mocinhos nem bandidos", uma profunda
conclusão filosófica compartilhada por Guilherme Boulos e Marcos Feliciano. É o
truque típico, grosseiro, para borrar a fronteira entre agressor e vítima.
Já a variante "identitária" enxerga, na indignação diante das colunas de refugiados, uma suposta "hipocrisia ocidental". "Tudo isso", acusam, "apenas porque são europeus e brancos". Os sacerdotes identitários, figuras abundantes nas páginas da Folha, apostam suas fichas no colapso da memória histórica: a Guerra do Vietnã começou a acabar quando emergiram as imagens dos bombardeios de napalm sobre aldeias vietnamitas.
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