O Estado de S. Paulo
Queremos crer que o ministro respeita o que se passou, o que se manteve e o que se esvaiu, assim como entrevê dias melhores, sem fantasias utópicas
O cargo de ministro da Fazenda pode parecer,
à primeira vista, incompatível com o hábito cotidiano de leituras de cabeceira.
Em especial no momento tenso em que vivemos. Em se tratando de Fernando Haddad,
é um desafio compreender o que lhe apraz, mas que talvez nos possa dar algumas
pistas sobre o que se encontra no horizonte de expectativas econômicosociais do
governo. Quando ele foi flagrado ao sair de uma livraria, em abril de 2024, com
obras do pensador alemão Re i n h a r t Kos e l l e c k (1923-2006), o assombro
tomou muitos dos profissionais (o presente autor se inclui) nas oficinas do
historiador espalhadas por todo o País.
Koselleck não é uma literatura de final de semana. Não é entretenimento. Muito menos uma escrita convidativa. Em geral está na estante e não na cabeceira. O autor usa termos impronunciáveis como Begriffsgeschichte (história dos conceitos); seus livros, verdadeiros tratados de teorização; seu foco, uma especialidade insólita para muitos: intenções e mudanças, no passar do tempo, de palavras e termos que utilizamos no nosso dia a dia. O estudo do político, por exemplo, está no rol de suas preocupações. Não poderia ser diferente com a economia.
Koselleck parte do pressuposto de que a
linguagem – político-econômica, mas não apenas – reflete o que fazemos de
concreto na vida, e este “fazer”, por sua vez, fornece princípios e ideias para
nossa reflexão, expressa em palavras. Em um de seus livros mais célebres,
Futuro Passado, de 1979, adquirido pelo ministro, o autor alemão afirma que há,
na sociedade moderna, indícios de um tempo distante em que ora o passado ditava
as regras dos homens no presente, como um manual para ações do futuro, uma
espécie de magistra vitae (mestre da vida, para os romanos), ora o futuro é que
agregava as multidões do presente, certas de que as promessas de seus líderes
carismáticos se tornariam reais, como nunca antes visto na História.
Mas fato é que, no contexto histórico do
Brasil atual, com a realidade imposta pelos cortes de gastos, saneamento das
finanças, redução da burocracia, etcétera, “mercado” e “Estado”, quase que
personificados pelo debate público, duelam, discordam, pelejam. O primeiro
impondo uma retórica caduca, uma fórmula que se jaz, ignorando os brasileiros
ao rés do chão, em especial os relegados à pobreza e à extrema pobreza,
embalado por um Parlamento reativo, perverso, sádico-bilionário; o segundo
embebido pela promessa de um porvir resplandecente, glorioso, ufanista, excessivamente
otimista.
Os próprios conflitos econômicos e
ideológicos, a bem dizer, nos ajudam a refletir sobre essa situação. Na
perspectiva do pensador alemão, aqui as atitudes não falam mais que as
palavras, mas o inverso. Neste Brasil dos tempos presentes – no plural porque,
aparentemente, no singular ninguém mais se entende –, progressistas são aqueles
defensores árduos e fanáticos da imposição intransigente de um Estado custoso,
ineficaz, pesado, de “tudo que é gratuito e feio”, na letra de Renato Russo.
Conservadores, por sua vez, figuras decrépitas, carcomidas pelo tempo, por um
fetiche financeiro, muito mais vinculados ao reacionarismo do que à moderação.
É preciso que se leve em conta que na longa
duração ( longue durée para os historiadores franceses) as palavras se
transformam, se deformam, se expandem, tomam contornos variados. Mas sua
essência permanece. Caso contrário, não se tornariam “conceitos” na concepção
de Koselleck, capazes de dizer ou desdizer os fenômenos humanos no correr do
tempo. Ocorre que nos “certões” de Goiás, como diriam os portugueses séculos
atrás, hoje a bagunça é tamanha, que é dificultoso navegar pelas nuances do
nosso vocabulário, do nosso repertório político-econômico, restando aos que se
dedicam às palavras e seus significados a perplexidade, tamanha baixaria.
Haddad leitor de Koselleck sabe que os
vocábulos Estado e mercado não são desprovidos de sentido. Cada qual sugere
associações (e paixões) que são relevantes social, político e economicamente.
Instauram modelos e formas de “comportamento e atuação, regras jurídicas e
mesmo condições econômicas”, como afirma o estudioso alemão. Não à toa, atento
a esse momento que vivemos, o ministro é precavido, mede as palavras, é
prudente, esmero.
Tendo consciência de que cada fato, cada enunciado, é único e não se repete na História, Haddad se coloca no lugar de um homem de seu tempo. Ou seja, no presente. Ele assume os riscos de ser espremido entre duas forças que se consideram atemporais. Queremos crer que o ministro respeita o que se passou, o que se manteve e o que se esvaiu, assim como entrevê dias melhores, obviamente, mas sem fantasias utópicas ou futuristas. Temos à frente tempos difíceis para equaciona rasco nt as do Paí s . A apreensão, a tensão – com perdão de um trocadilho já surrado – é que o país do futuro continue refém de um futuro passado.
*Historiador pela Ufrj, doutor pela Casa de Oswaldo
Cruz com pós-doutorado na Ufpa, é professor da Uemg
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