Folha de S. Paulo
O governo não deve ser entregue a um CEO
porque um país não é uma empresa
Quem precisa de políticos? Não seria melhor
ter um CEO dirigindo o país? Alguém com espírito analítico e prático, em busca
do bem comum?
A pergunta é frequente entre as almas
desiludidas com a fauna política. Mas agora há um "filósofo" disposto
a defender esse tipo de regime. O nome é Curtis
Yarvin e, segundo o New York Times, é nome influente no movimento Maga
e no Vale
do Silício.
Fácil entender por quê. A democracia não
serve, diz ele em entrevista ao jornal. É demasiado lenta com seus freios e
contrapesos.
Melhor entregar o governo a um
rei-ditador-CEO (ele vai mudando os nomes) capaz de atuar sem esses
obstáculos. Donald Trump,
logicamente, é esse rei-ditador-CEO, espera Yarvin.
Não vale a pena perder tempo com coisas óbvias. A lentidão da democracia não é um defeito de fábrica. É uma salvaguarda necessária para evitar, precisamente, a emergência de um rei absoluto. Os tais Pais Fundadores dos Estados Unidos sabiam o que faziam.
Além disso, a afirmação de Yarvin de que os
reis, no passado, conseguiram construir a civilização de forma pacífica deve
ser novidade para os historiadores das Cruzadas,
da Guerra
dos Cem Anos, da Guerra
das Rosas, da Guerra dos 30
Anos, da Guerra
Civil Inglesa et cetera.
Curtis Yarvin delira. Mas, apenas como
hipótese, vamos levar a sério o delírio: por que não entregar o governo a um
CEO?
A resposta é mais simples do que parece:
porque um país não é uma empresa. A ambição de confundir os dois é uma ameaça
direta à liberdade dos indivíduos.
Foi Michael
Oakeshott (1901-1990) quem, há precisamente 50 anos, lidou com essa
confusão no seu "On Human Conduct" (1975). Raros foram os livros que
tiveram uma tão grande influência na minha cabeça. Existem dois tipos ideais de
associação humana, lembrava ele. Existe a "associação de
empreendimento" ("enterprise association",no original) e a
associação civil.
A primeira não descreve apenas uma empresa.
Pode ser uma universidade, um sindicato, um clube —no fundo, o que define a
associação de empreendimento é o fato de procurar um fim determinado— o lucro,
o conhecimento, melhores salários, vitórias esportivas etc. Todos os membros da
associação de empreendimento contribuem para esse fim.
A associação civil é outra coisa: um tipo de
associação onde os membros, respeitando regras e leis gerais, procuram os seus
próprios fins. Idealmente, o Estado democrático deveria ser uma associação
civil, não uma associação de empreendimento, defende Oakeshott. E por quê?
Por uma questão de liberdade. Numa associação
de empreendimento, a liberdade dos indivíduos está sempre preservada porque
eles podem entrar e sair da empresa, da universidade ou do clube. Ou seja, não
são prisioneiros dela.
Mas como sair da condição civil? Como sair da
sociedade política organizada?
Romantismos à parte, não é possível. Na
associação civil, a minha liberdade só pode ser preservada se essa associação
não se transformar numa associação de empreendimento. Precisamente porque eu
não escolhi entrar e não posso escolher sair.
Dito de outra forma, eu só serei livre se o
governo não transformar a sociedade numa empresa onde todos têm de se submeter
ao mesmo fim, quer queiram, quer não.
Na sua cabeça pueril, Yarvin argumenta: as
melhores coisas da vida foram feitas por empresas. Basta olhar ao redor para os
objetos do cotidiano. Como duvidar da excelência e da benevolência de um
governante-CEO? Mais uma vez, o "filósofo" delira.
O progresso material é valioso e
insubstituível, ninguém nega. Mas esse progresso também é feito de erros,
fracassos e abusos porque nem todos os empresários correspondem à imagem
platônica que Yarvin tem deles.
De resto, "as melhores coisas da
vida" não se resumem à evidência material. Só uma criança, fascinada pelos
seus brinquedos, seria capaz de acreditar no contrário.
Agora que Donald Trump inaugura o seu segundo
mandato com um poder quase absoluto, a esperança derradeira é que ele não tente
transformar os Estados Unidos numa empresa, submetendo os americanos (e não só)
a um único fim.
Para que essa esperança se cumpra, é bom que
a democracia liberal funcione. Que seja lenta. Que seja pausada. Que os freios
e contrapesos da Constituição funcionem.
Que a descentralização administrativa que
tanto encantou Tocqueville —a
teia de governos estaduais, locais, regionais, distritais— possa atrasar ou
suspender os piores caprichos do novo César.
E, claro, que o novo César seja mais
inteligente do que a corte de "filósofos" que o rodeia.
Escritor, doutor em ciência política pela
Universidade Católica Portuguesa.
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