Folha de S. Paulo
Ainda se sabe pouco do que republicano quer
fazer e de sua capacidade operacional, legal ou política de implementar medidas
Cobrar mais imposto de importação, limitar
o comércio exterior e baixar impostos domésticos sem ter receita
alternativa é uma fórmula para cozinhar um prato de inflação e taxas de juros mais
altas. É o que diz a opinião sensata, óbvia e convencional sobre o efeito da
implementação de algumas das promessas de Donald Trump.
Em tese e tudo mais constante parece razoável
acreditar que assim seja. Claro que são essas as medidas que podem ter impacto
mais imediato na economia americana
e do mundo. Donos de dinheiro grande nos EUA acreditam que guerra comercial
haverá e, portanto, acreditam ao menos em dólar mais forte (por causa de taxas
de juros mais altas).
Mas
ainda nesta segunda-feira da posse, se sabe muito pouco do que Trump vai
querer fazer de fato, da extensão ou profundidade dessas medidas e em sua
capacidade, operacional, legal ou política, de implementá-las. Além do mais, a
depender do que fizer em outras áreas e do resto do mundo, seu programa de
governo pode ter efeito ainda mais drásticos ou dramáticos.
Trump adiou por algumas semanas o anúncio do aumento de impostos de importação e outras medidas restritivas contra China, seus aliados Canadá e México e sabe-se lá quais países. Não é possível nem especular sobre o tamanho do efeito das restrições comerciais.
No limite maior, podem desandar em uma guerra
comercial global, com efeitos secundários sobre atividade econômica,
investimentos, fluxos de capitais, preços e condições financeiras. Se
moderadas, podem redundar em renegociações de acordos, como Trump 1 já o fez
com Canadá e México, ou em concessões de outros parceiros comerciais —Trump é
negocista, da barganha. Os aumentos de "tarifas" (impostos de
importação) seriam então limitados, com prejuízos contidos para alguns setores
da economia americana. Parece óbvio, claro, mas nem os americanos têm ideia do
que virá.
O déficit fiscal do governo federal em
relação a sua receita é o maior em 50 anos, afora nos anos pós-estouro da crise
de 2008 (2009 a 2012) e na epidemia.
Nesses períodos, o governo foi em parte e na
prática financiado pelo Fed, o banco
central dos EUA. O Fed também na prática subsidiou o setor privado, com ações
que redundaram em juros menores. Além do mais, o tamanho da dívida em relação
ao PIB era de 39,2% em 2008. Em 2012, foi a 70%. Para 78,9% em 2019 (antes da
epidemia). Em 2024, foi a 97,8%. Já se tornou uma preocupação dos donos do
dinheiro.
Como vai ser agora? Trump quer manter cortes
de impostos para ricos e diminuir impostos para empresas. O déficit primário já
é de 3,6% do PIB. Como vai tapar o rombo? Trump diz que vai desmontar o Estado,
embora o grosso da despesa seja Previdência, saúde e defesa. Diz ainda que vai
obter dinheiro com mais impostos de importação (que teriam de ser brutais, para
renderem o bastante). Sem ter ideia do programa fiscal de Trump, é muito
difícil começar a pensar sobre taxas de juros e dólar ou inflação.
Qual vai ser a reação popular e política se a
inflação voltar a subir? Se o custo do financiamento imobiliário aumentar ainda
mais? Se o modesto ganho dos salários reais dos anos finais de Joe Biden
desacelerar a quase nada?
Apesar da onda de bajulação dos muito ricos e
aspirantes oficiais a plutocratas, setores prejudicados por tiros no pé de
Trump vão ficar calados? Se houver retaliação de parceiros comerciais contra a
produção agrícola americana, o que o Congresso vai fazer? Deixar que se
explodam? A agricultura emprega e produz relativamente pouco, dado o PIB dos
EUA, mas tem muita influência política, no Senado em especial.
No pacote do primeiro dia, Trump
anunciou também a retomada do Canal do Panamá. O que quer dizer? Que vai
ameaçar o governo panamenho apenas para conseguir restrições ao investimento
chinês naquele país, por exemplo, e algum favor para empresas americanas
(tarifa mais baixa)? Pode ir às vias de fato?
Mesmo sem uso explícito da força, de
"marines", vai ser agressivo e ameaçador a ponto de assustar
mexicanos ou aliados europeus (e leva-los a tomar providências)? Essa nova
política do grande porrete vai ter qual efeito em relações econômicas, em
gastos de defesa no resto do mundo?
Imigração. Vai haver impacto bastante,
deportações maciças, para afetar o mercado de trabalho (agricultura e serviços
perderiam trabalho barato)? Mas em quanto tempo? Em qual dimensão? Vai haver
campos de concentração pré-deportação (o que mudaria, para bem ou mal, a
política mundial sobre o assunto)? A deportação vai ser grande a ponto de
afetar remessas (de dinheiro imigrante) para países centro-americanos?
De cara, Trump também anunciou
uma ampla desregulamentação do setor de energia e combustíveis, o desmonte
do programa Biden de transição ambiental e de tecnologia verde e a saída do
Acordo de Paris.
Suponha-se que os EUA "perfurem",
explorem combustíveis fósseis em massa, que mudem sua produção de energia, que
tudo isso mexa em preços de energia e no nível de investimento em tecnologias
associadas (carro elétrico, baterias, solar etc.). Que os EUA por isso percam
vantagens em tecnologia de eletricidade, mas tenham mais energia barata para
data centers e inteligência artificial. Mudança grande de fato pode ter
impactos amplos em investimento no mundo inteiro.
Equiparar cartéis de drogas a organizações
terroristas internacionais, como prometeu Trump, pode ampliar o escopo de
atuação militar americana. Vai ter tiro pancada e bomba no quintal
latino-americano? Ou vai ser bravata? Trump ameaça também países que queiram
driblar o uso do dólar. Não se sabe que tipo de punição econômica pode aplicar
(e que não ricocheteie de volta, na cara dos americanos). Se for para valer,
pode facilitar a fragmentação econômica mundial, o que é uma ineficiência
(menos crescimento).
No fim das contas, se o programa Trump em
economia e relações internacionais for o que parece nos discursos e levado ao
limite, o mundo acabaria por ser dividido em esferas de influência, quintais
onde outras potências não se metem. Isso quer dizer que a China pode levar
Taiwan? Que a Rússia pode ocupar parte do leste europeu ou submetê-lo sob
ameaça? Que economia resulta disso?
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