quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

O fiscal, o monetário e a estabilidade da dívida pública - Benito Salomão

Valor Econômico

Apesar de todas essas pressões, o resultado primário do setor público não vem piorando desde o início do colapso do teto de gastos em 2022

A dívida pública brasileira vem crescendo a taxas preocupantes. Desde o início deste governo, ela avançou cerca de 7 pontos percentuais, saindo de 71,4% do PIB em 1/2023, para 78,6% em 10/2024 (dados da Dívida Bruta do Governo Geral). Se essa trajetória não for interrompida, é possível chegar em agosto de 2026 - durante a eleição - com uma DBGG próxima a 85% do PIB, fechando o último ano desta legislatura, em dezembro, acima dos 86%.

Consequências indesejáveis surgem de um endividamento tão elevado. Em artigo empírico publicado em 2023, demonstro que endividamentos públicos superiores a 84% do PIB são prejudiciais ao crescimento econômico. Isso sem contar seus efeitos sobre as taxas de juros, nas pontas curta e longas da estrutura a termo. Em outras palavras, se essa trajetória da DBGG não for interrompida, grandes são as chances de termos problemas à frente.

No entanto, o que produz uma dinâmica insustentável do endividamento? Antes de prosseguir, é preciso ter em mente que a dívida pública é produto da interação entre os lados fiscal e monetário da economia. Dessa forma, estabilizar a DBGG requer uma combinação de fatores que englobam o resultado primário, o custo de rolagem de seu estoque e o crescimento do PIB. De 2022 para cá, o ciclo econômico tem feito a parte dele contribuindo para acelerar o denominador da relação dívida/PIB.

Quanto ao esforço fiscal visto no resultado primário é preciso qualificar. Desde meados de 2022, as despesas com transferências têm subido. O programa Bolsa Família, por exemplo, custava cerca de R$ 36 bilhões em janeiro de 2022 e hoje custa R$ 171 bilhões. Outras despesas que cresceram fortemente foram os precatórios, que saltaram de R$ 66 bilhões para cerca de R$ 167 bilhões no mesmo período (todos os dados a preços constantes de 10/2024).

Questões de economia política que levaram à expansão dessas rubricas à parte, é importante salientar que elas estiveram no epicentro de um conjunto de emendas constitucionais aprovadas entre 2021 e 2022 que implodiram o antigo teto de gastos. As PECs: i) Emergencial; ii) dos Precatórios; iii) Kamikaze e; iv) de Transição estiveram umbilicalmente relacionadas com a acomodação do novo patamar dessas despesas no orçamento. A partir de 2023, já no novo governo, outros fatores se somaram a estes produzindo pressões orçamentárias. Destaca-se entre tais fatores: a reposição do orçamento de inúmeras políticas públicas; o restabelecimento de reajustes reais no salário mínimo, bem como a recomposição parcial de salários de servidores públicos (há anos congelados), todas elas, despesas meritórias.

Aqui vale uma pausa na discussão fiscal para observar alguns aspectos de economia política. O extinto teto de gastos, que foi eficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, teve como efeito colateral um considerável passivo social que culminou no seu próprio colapso já no final do governo anterior. Em outras palavras, embora eficiente para estabilizar a DBGG no curto prazo, o excesso de rigidez daquela regra reprimiu demandas sociais que a tornaram politicamente inviável. Tal inviabilidade foi constatada já na saída da pandemia, mas apenas com o novo arcabouço fiscal (NAF) houve um fim definitivo no teto.

Voltando à questão fiscal, é importante salientar que, apesar de todas essas pressões, o resultado primário do setor público não vem piorando desde o início do colapso do teto de gastos em 2022. Considerando exclusivamente o resultado do Governo Central (submetido ao teto), em 2021 o déficit foi de 0,39% do PIB; passando em 2022 para um superávit de 0,55%, seguido por um novo déficit 2,43% no ano seguinte. Dado que o resultado de 2022 teria sido um déficit se não fosse a rolagem de precatórios pagos em 2023, a média do biênio foi um déficit de 0,84% do PIB. Em 2024, o dado de outubro sugere um déficit de 0,68% do PIB, e as previsões do último Focus de 0,5% do PIB para o encerramento do ano.

Como já esperado desde a sua concepção em meados de 2023, o resultado de 2024 virá abaixo do limite inferior concebido no NAF (um déficit de 0,25% do PIB). No entanto, é bem inferior ao observado na média do biênio anterior. Ademais, em termos comparativos, entre 2017 e 2019, durante a vigência da regra do teto, o déficit primário médio foi de 1,55% do PIB e, em nenhum daqueles anos, o déficit foi inferior a 1% do PIB. Ou seja, em termos do resultado primário, o teto coexistiu com déficits primários mais elevados do que o NAF convive na atualidade.

No entanto, durante a vigência do teto (pré-pandemia) a DBGG estabilizou-se mesmo diante de taxas de crescimento do PIB ruins, ao passo que agora, durante a vigência do NAF esse indicador se expande. Por que isso acontece?

O sucesso do teto de gastos não pode ser avaliado exclusivamente pelo prisma fiscal. Quando aprovada no Congresso, em dezembro de 2016, o custo implícito de rolagem da DBGG era de 13,1% ao ano. Três anos depois, em dezembro de 2019, havia recuado para 7,8% ao ano e continuou em queda até a saída da pandemia. Com a aproximação das eleições de 2022, as consecutivas PECs “fura teto” e as expectativas de uma nova fase de discricionariedade fiscal, essa taxa implícita foi rapidamente restabelecida chegando na eleição, em 10/2022, novamente ao patamar de 10,5%. Mesmo em 2023, quando a taxa básica de juros Selic caiu de 13,75% ao ano para 10,5%, o custo implícito não cedeu e continuou rondando a casa dos 11%.

Neste ambiente a equipe econômica lançou o pacote do último dia 28. O plano, se aprovado, promete economizar R$ 72 bilhões até o final de 2025. Ainda é prematuro saber se o impacto do pacote realmente tem esse potencial, mas, caso tenha, seria possível zerar o déficit em 2025 (há a possiblidade de anunciar medidas adicionais até lá). Como já abordei em artigos anteriores, simplesmente zerar o déficit não estabiliza a DBGG, o esforço fiscal necessário seria de um superávit próximo a 2% do PIB. O custo social de um superávit dessa magnitude o torna, entretanto, inviável politicamente.

No entanto, o déficit zero, caso ocorra em 2025, será uma grande notícia visto que o país opera em déficits primários desde 2014. Por ora, salienta-se que nem o NAF, nem qualquer outra regra fiscal, independente do que se passa no primário, será capaz de estabilizar um endividamento cujo custo de rolagem é superior a 10% ao ano. Em suma, estabilizar a trajetória da DBGG e evitar maiores consequências macroeconômicas de sua expansão é uma arte que irá demandar a ruptura com o padrão de discricionariedade fiscal que produz desconfianças e exacerba as instabilidades.

 

Nenhum comentário: