Decreto sobre ação policial abre oportunidade
O Globo
Governadores devem entender necessidade de
diálogo com Brasília para enfrentar crise na segurança
Ao longo do ano passado, o governo federal
rompeu a inércia e começou enfim a tomar iniciativas no campo da segurança
pública, uma das maiores preocupações dos brasileiros. Primeiro, elaborou a PEC
da Segurança — que amplia as atribuições das polícias federais (PF e PRF) e
tenta suprir as lacunas que limitam o funcionamento do Sistema Único de
Segurança Pública (Susp). No fim do ano, o Ministério da Justiça e Segurança
Pública baixou normas para regular a ação policial. Ambas as medidas
encontraram resistência entre os governadores.
É compreensível que os governos estaduais critiquem o que consideram uma invasão de suas prerrogativas constitucionais. No caso específico das normas destinadas a coibir abusos da polícia, é legítima a preocupação com o risco de paralisia, num momento em que a população mais precisa das forças da lei. Mas as normas que constam do decreto federal são sensatas. Nada mais fazem além de estabelecer regras para o uso progressivo e racional da força pelos policiais, com base em princípios de “legalidade, precaução, necessidade, proporcionalidade, razoabilidade, responsabilização e não discriminação”. A profusão de cenas de abusos recentes da polícia justifica que o governo formalize o óbvio — a força só deve ser usada em último caso — e imponha condições para isso, como condicionar ao respeito às regras o acesso a recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).
O preocupante na reação dos governadores ao
decreto foi a divisão ao longo das linhas políticas. Oposicionistas,
concentrados nas regiões Centro-Sul e Sudeste, o qualificaram de “presente aos
bandidos” e chamaram as condições impostas de “chantagem”. A reação chegou ao
ponto de o senador Mecias de Jesus (RR), líder do Republicanos, apresentar
Projeto de Decreto Legislativo para sustar os efeitos das medidas do governo
federal. Em resposta, os governistas, concentrados na região Nordeste,
publicaram um documento de apoio afirmando que o decreto “não altera a
autonomia dos Estados nem as normativas já estabelecidas”.
A abordagem da questão com base em divisões
políticas significa perder uma rara oportunidade de estados e governo federal
começarem enfim a dialogar para estabelecer protocolos mínimos com o objetivo
de enfrentar o crime organizado de modo eficaz e determinado. Há farto
noticiário de reações desmedidas de policiais com vítimas inocentes, revelando
o despreparo das corporações para enfrentar o desafio. No lugar da violência,
é preciso atuar com inteligência. Sem cumprir regras, a polícia passa a
representar uma ameaça à população, em vez de cumprir o dever de protegê-la.
A situação é crítica. Quadrilhas e facções
criminosas se articulam dentro e fora do país, comandam tráfico de drogas e
armas, aterrorizam o país. Por fazer fronteira com os três maiores produtores
de cocaína — Colômbia, Peru e Bolívia —, o Brasil precisa de uma política de
segurança articulada entre os governos federal e estaduais. Em vez de insistir
em ideias demagógicas que sempre deram errado, todos os governadores — de
oposição ou não — deveriam entender a necessidade de cooperação com o governo
federal para que a realidade mude. A alternativa será o poder crescente do
crime organizado sobre o Estado e as instituições.
Surto de gripe aviária nos Estados Unidos não
é motivo para desespero
O Globo
Infecções pelo H5N1 têm sido brandas, não há
registro de contágio humano, e vacinas estão avançadas
A gripe aviária,
transmitida pela variante H5N1 do vírus influenza, tem preocupado os
epidemiologistas. Entre 2003 e 2023 foram registrados 878 casos no mundo. Só
neste ano, os Estados
Unidos já somam 66 casos em humanos, 11 mil em aves selvagens e
128,9 milhões em aves de criação. O salto do vírus para mamíferos foi
constatado em março pela infecção de vacas leiteiras e, em seguida, pela
contaminação de trabalhadores rurais. Há 913 rebanhos contaminados em 16
estados americanos. O governador da Califórnia, Gavin Newsom, decretou
emergência para facilitar a atuação das agências governamentais.
Por enquanto, não há registro de transmissão
entre humanos. O contágio pelo leite pode ser evitado pela pasteurização, mas
tendências da medicina alternativa valorizam o leite cru, cuja venda é
permitida nos Estados Unidos. A partir do momento em que o vírus der o salto
evolutivo necessário à transmissão entre humanos, estarão dadas condições para
uma pandemia.
Dos 878 casos de H5N1 registrados entre 2003
e 2023, 458 resultaram em mortes, uma letalidade elevadíssima. Quase todos os
casos americanos neste ano foram leves, semelhantes a uma gripe comum, mas um
caso grave detectado na Louisiana se revela preocupante. Cientistas supõem que,
para infectar humanos mais facilmente, o vírus se torna menos agressivo, como
aconteceu com variantes da Covid-19.
Mas, ainda que que o H5N1 cruze a barreira de
espécies numa versão branda, o impacto sobre a saúde pública pode ser
relevante. Os novos casos graves sugerem que haveria pressão sobre os sistemas
de saúde. “Os países devem estar atentos e se preparar com plataformas de
diagnóstico adequadas para fazer mapeamento de casos e, mais que tudo, como já
fizeram governos europeus e os Estados Unidos, começar a montar seus estoques
de vacinas”, diz o virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale,
coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vigilância
Genômica de Vírus.
Caso a epidemia se alastre, não há motivo
para desespero. O H5N1 é conhecido, e as pesquisas sobre vacinas estão em
estágio avançado. No Brasil, o Instituto Butantan desenvolveu a sua em 2023. Só
espera sinal verde da Anvisa para começar testes clínicos com humanos. Os casos
de contaminação nos Estados Unidos são um motivo para acelerar a tramitação
desses testes.
Em abril, a Anvisa criou regras para registro
e atualização de vacinas contra a gripe aviária. Os laboratórios poderão
protocolar registros que depois precisarão ser apenas atualizados diante de
novas variantes. Com essa aprovação, o Butantan pode adaptar a vacina para a
versão do vírus que estiver circulando. “A ideia é ter pelo menos uma
quantidade mínima caso o vírus comece a se disseminar”, afirma o infectologista
e diretor do Butantan Esper Kallás.
Por enquanto, a situação no Brasil é
tranquila. Não houve surtos entre aves silvestres no segundo semestre, diz
Helena Lage, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Ela própria, no
entanto, afirma que num mundo globalizado tudo muda rapidamente.
Com apreensão, mundo aguarda decisões de
Trump
Valor Econômico
O sistema de pesos e contrapesos dos EUA será testado até seu limite - para o bem da democracia global, espera-se que resista
O ano de 2025 começa sob o signo de Donald
Trump. Ao tomar posse na Presidência da maior economia e maior potência militar
do mundo, em 20 de janeiro, suas decisões marcarão os rumos globais já no curto
prazo. Os acordes iniciais, expressos nos desejos e ações manifestadas antes da
posse, mostram uma melodia ruidosa para o futuro. Trump externou sua vontade
imperial de governar os destinos do mundo, disparando ameaças e ultimatos para
aliados e adversários, supostos ou reais. Sua equipe foi escolhida a dedo desta
vez, e composta por aliados fiéis, cuja marca comum é a obediência a um chefe
cuja coerência de propósitos é instável. As tensões geopolíticas estão com
forte viés de alta.
As políticas ou aspirações de Trump sugerem
fortes turbulências econômicas nos mercados mundiais. Seu desejo de elevar
tarifas, em primeiro lugar de seus maiores parceiros comerciais - México,
Canadá, União Europeia -, não faz sentido, e os que lhe atribuem aura de
estadista afirmam que as ameaças tarifárias não são para valer - são
“transacionais”, como dizem, e visam a obter concessões aos EUA.
Trump ordenou à UE que compre mais petróleo e
gás americanos se quiser escapar de impostos de importação. A exigência é
descabida à luz das regras do comércio internacional, que o presidente eleito
americano desrespeitou em seu primeiro mandato, e é anacrônica: com o corte do
fornecimento russo após a invasão da Ucrânia, a Europa já se dirigiu ao mercado
americano para abastecer-se de energia.
O acesso ao maior mercado consumidor do mundo
estará condicionado às idiossincrasias de Trump. O aumento generalizado de
tarifas elevará os preços nos EUA, obrigará o Fed (o banco central americano) a
cortar menos os juros, ou até elevá-los novamente, fortalecerá o dólar e
retirará competitividade dos exportadores americanos. O enorme déficit
comercial, que se aproxima de US$ 1 trilhão, não deverá cair, como quer Trump,
mas subir.
Outras peças da política econômica parecem
igualmente desajustadas. A manutenção dos cortes de impostos do primeiro
mandato, que expiram em 2025, é certa. Trump pretende reduzir os impostos sobre
empresas a 15%, adicionando mais US$ 7,5 trilhões em dez anos à divida de US$
36 trilhões do país. Os credores - um dos grandes é a China - tenderão a exigir
mais juros para a rolagem do débito, e será interessante ver como agirá, desta
vez do outro lado do balcão, o bilionário secretário do Tesouro, Scott Bessent,
ex-operador do fundo de George Soros e criador do hedge fund Key Square Capital
Management. Os hedge funds estão entre os mais agressivos operadores dos
mercados globais.
O corolário de EUA em primeiro lugar e a
agenda isolacionista de Trump querem subordinar os demais países a sua vontade
mutante. Trump disse ao governo panamenho, de repente, que pode querer de volta
o Canal do Panamá, se o país beneficiar a China. Mostrou o desejo de comprar a
Groenlândia, território administrado pela Dinamarca. Ameaçou o Brics caso
queira livrar-se da dependência do dólar em suas transações. Afirmou que o
orçamento da Otan, da qual sempre ameaça se retirar, deveria ser dobrado.
O mundo tornou-se mais perigoso com a
explosão de conflitos militares, como a invasão da Ucrânia pela Rússia. O
Oriente Médio vive mudança do mapa de poder com as incursões de Israel em Gaza,
Líbano, Iêmen, Síria e Irã. Trump escolheu para encarar esses desafios o
ex-apresentador da CNN e ex-oficial de infantaria Pete Hegseth. “Pete é durão,
inteligente e um verdadeiro crente no America First”, escreveu Trump ao
nomeá-lo. E isso basta.
Trump disse que acabará rapidamente com a
guerra na Ucrânia, possivelmente cortando a ajuda militar ao último e fazendo
acordo com o presidente russo, Vladimir Putin, a quem admira, entregando-lhe
territórios.
Na política doméstica, Trump prometeu
prosseguir sua obra de destruição das instituições. Disse que no primeiro dia
de seu novo mandato libertará os “patriotas” condenados por tentarem impedir à
força a posse de um presidente eleito, Joe Biden, em 6 de janeiro, além de usar
o FBI para perseguir seus adversários e o Exército para caçar imigrantes
ilegais.
Trump faz o contrário do que se espera de um
estadista. Suas ações são intempestivas, quando regras e previsibilidade
baseiam o funcionamento da sociedade e dos mercados. Sua vitória, à primeira
vista, o teria tornado inexpugnável, mas não é assim. Com maioria na Câmara e
no Senado, Trump poderá ver rebeliões dos republicanos moderados. Isso
aconteceu quando ele e Elon Musk tentaram eliminar o teto de endividamento do
governo e pôr abaixo um acordo com os democratas para evitar um shutdown. Foram
derrotados com a debandada de 35 republicanos a favor do controle de gastos. A
pequena margem de vantagem nas duas Casas pode transformar pequenas defecções
em grandes derrotas do Executivo.
Após a eleição de meio de mandato, Trump
caminhará para o fim de sua carreira política, abrindo disputa sucessória que
não lhe facilitará a vida no Congresso. Por isso, deverá ter pressa agora. O
sistema de pesos e contrapesos dos EUA será testado até seu limite - para o bem
da democracia global, espera-se que resista.
Ano começa com mais atrito entre Poderes
Folha de S. Paulo
Veto correto de Lula à farra de emendas não
muda o fato de que Executivo precisa do Legislativo se quiser conter gastos
Não houve trégua de Ano Novo no conflito que
envolve os três Poderes em torno das despesas que deputados e senadores
incluem, no mais das vezes em benefício próprio, no Orçamento federal —as
famigeradas emendas parlamentares.
No apagar das luzes de 2024, o presidente
Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) sancionou a
Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com vetos que atingem
diretamente interesses dos partidos representados no Congresso. No mérito, as
decisões foram corretas.
Saiu do texto o dispositivo, aprovado pelos
congressistas, que impedia o bloqueio de verbas destinadas a emendas
individuais e de bancada em caso de necessidade de contenção de gastos. Fora
dessa hipótese, essas rubricas continuam sendo de execução impositiva.
Emendas atingiram valores aberrantes. Foram
R$ 47,9 bilhões em 2024, dos quais R$ 33,6 bilhões nas modalidades impositivas.
Limitar a contenção dessas despesas —em geral, de péssima qualidade, sem
atenção a critérios de prioridade e transparência—
dificultaria o já precário programa de ajuste das contas públicas e forçaria
cortes mais profundos em outros setores.
Outro veto de Lula atingiu o fundo
partidário, que, como o nome indica, direciona recursos para o custeio das
legendas. A regra aprovada pelo Congresso, que adotava como base a correção dos
valores fixados em 2016, permitira um aumento em relação ao R$ 1,33 bilhão
previsto na proposta do governo.
Nesse caso as cifras são pequenas diante das
dimensões do Orçamento, mas há um princípio em jogo. O fundo de sustentação dos
partidos políticos —que deveriam buscar filiados, em vez de depender do
dinheiro do contribuinte— cresceria mais que o total dos demais programas
da Justiça
Eleitoral, o que caracterizaria uma iniquidade.
As razões não mudam o fato, porém, de que o
governo Lula precisará dos votos do Congresso se quiser aprofundar o
controle dos gastos federais e reduzir o risco de uma crise
econômica anunciado pelo dólar acima de R$ 6. Tampouco as decisões do
ministro Flávio Dino,
do Supremo Tribunal Federal, que amparam vetos de Lula, mudam esse quadro.
O governo é politicamente frágil, dadas a
vitória por margem mínima na eleição presidencial, a predominância de forças ao
centro e à direita no Congresso e a decisão de privilegiar petistas e seus
satélites na composição do primeiro escalão federal.
Apesar do aumento inaudito de gastos
públicos, a aprovação da gestão do mandatário entre os brasileiros aptos a
votar (35%) é quase idêntica à reprovação (34%), segundo pesquisa realizada em
dezembro pelo Datafolha.
A batalha para disciplinar as emendas
parlamentares é de interesse de todo o país. Lula ajudaria a causa se desse um
exemplo de austeridade orçamentária e se dividisse poder em uma coalizão
partidária mais sólida. A saída para o conflito é política.
Barganha política ameaça agências reguladoras
Folha de S. Paulo
Disputa entre governo e Congresso traz riscos
para eficiência de serviços prestados, que precisam de investimento seguro
É notório que há negociação na escolha de
diretores das agências reguladoras no Brasil, mas ainda assim espanta o nível
de interferência política na recente rodada de escolhas. Em seu terceiro
mandato, Luiz Inácio Inácio Lula da
Silva (PT), que nunca foi
um entusiasta da autonomia dessas entidades, tem agora a
concorrência do fisiologismo fortalecido no Congresso.
O caso da
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) evidencia o problema.
Ela tem vaga aberta na cúpula desde maio de 2024, e outra estará disponível em
maio deste ano. Não há indicação formalizada, entretanto, por causa de um
embate por ingerência nas decisões do setor.
Na ausência de um dos cinco diretores, não
foram poucos os impasses que terminaram empatados e paralisaram ações. Para
piorar, o risco de inoperância não só parece desprezado como ainda é usado como
munição contra a Aneel, tanto do lado do governo quanto do Congresso.
De acordo com a legislação, os cargos de
comando nas agências —responsáveis por regular serviços públicos sem
subordinação a ditames políticos— devem ser indicados pelo Palácio do Planalto
e submetidos ao Senado.
Uma vez aprovados, têm mandatos não coincidentes entre si.
Em um único dia, 16 de dezembro, o governo
Lula apresentou nada menos que 17 indicações para nove agências diferentes, o
que já é um indicador do tumulto político em torno do processo.
Como a Folha noticiou, porém,
barganhas políticas ameaçam o preenchimento das vagas. Em ao menos um dos
casos, o da
Agência Nacional de Mineração (ANM), o nome escolhido não agradou ao
senador Davi
Alcolumbre (União Brasil-AP),
favorito para comandar a Casa legislativa a partir de fevereiro.
Instituídas a partir dos anos 1990, agências
reguladoras precisam realizar uma delicada mediação para equilibrar o interesse
público e o de empresas estatais e privadas que assumiram a prestação de
serviços essenciais.
O modelo é sujeito a falhas, do aparelhamento
político à vulnerabilidade dos órgãos a lobbies dos setores que devem
monitorar. Em qualquer hipótese, é responsabilidade de Executivo e Legislativo
zelar pela nomeação de dirigentes capacitados.
Sem autonomia e credibilidade, as agências reguladoras terão dificuldades para garantir eficiência em áreas tão diferentes como vigilância sanitária, transporte, segurança nuclear, saneamento, energia e telecomunicações —e também deixarão de servir como garantias de estabilidade para os investidores.
Uma reforma contra a mediocridade
O Estado de S. Paulo
Lula admite que mudará ministros, repetindo o
que antecessores fizeram para redistribuir poder. A novidade é que a reforma
ministerial é também uma exigência contra a ineficiência
No almoço em que reuniu seus ministros, em 20
de dezembro, o presidente Lula da Silva admitiu o que já se avizinhava: fará
mudanças no primeiro escalão do governo. Uma inevitável reforma ministerial
deve ocorrer no início de 2025 – resta saber se ainda em janeiro ou se fatiada
de acordo com as circunstâncias políticas. Como muitas reformas promovidas por
Lula e seus antecessores, o manejo da coalizão multipartidária puxa o cordão
das mudanças. É um modo de acomodar novos aliados, redistribuir cargos e orçamentos
conforme o tamanho do apoio de cada legenda, adquirir musculatura para aprovar
agendas de interesse do Executivo, repactuar acordos conforme as eleições
recém-ocorridas e preparar a coalizão para a próxima disputa.
A reforma não fugirá à regra, mas desta vez
há também outra razão, e claramente desabonadora para Lula e sua equipe: a
ineficiência. O terceiro mandato de Lula é uma constrangedora soma de
ministérios medíocres. Na última pesquisa realizada pelo Ipec, oito de nove
áreas analisadas tiveram avaliação negativa superando a positiva, mesmo
considerando áreas com evidente impacto, como saúde, educação, economia, meio
ambiente, segurança pública e política social. Em 2023, no marco dos dez
primeiros meses de governo, outra pesquisa, do Instituto Paraná, questionou
eleitores sobre que nota dariam – de zero a dez – a ministros. Simone Tebet
(Planejamento) e Camilo Santana (Educação) obtiveram as maiores médias:
modestos 5,4.
No Alvorada, Lula não hesitou em deixar
recados sobre sua insatisfação. Márcio Macêdo (Secretaria-Geral) e Nísia
Trindade (Saúde) foram citados em tom de cobrança. José Múcio Monteiro (Defesa)
também, mas neste caso por seu pedido para deixar o governo, alegando cansaço.
No almoço, Paulo Pimenta (Comunicação Social) teve a sombra do marqueteiro
Sidônio Palmeira, cuja presença chamou a atenção por não ser ministro e estar
na condição de provável substituto numa área já criticada abertamente por Lula.
Ministros responsáveis pela articulação tiveram seus serviços sistematicamente
questionados nos dois primeiros anos de mandato.
Reformas ministeriais são comuns desde a
democratização. José Sarney abriu a série entre o fim de 1985 e o início de
1986, para retirar parte dos ministros que herdara de Tancredo Neves, morto
antes de assumir a Presidência, e parte que disputaria as eleições nos meses
seguintes. Fernando Henrique também fez a sua. Chegou a criar uma pasta para
compensar o PFL, à época o principal partido de sustentação do governo e
queixoso por perder o Ministério da Saúde. Em 2017, PP, PR e PTB davam um
ultimato a Michel Temer, ameaçando obstruir votações caso o presidente não
adiantasse mudanças. “Ou muda ou não vota mais nada aqui”, alertava o então
líder da bancada do PP, Arthur Lira, com a forma e o conteúdo típicos do
Centrão. Razão similar levaria Lula a realizar mudanças ainda nos primeiros
meses de 2023, trocando Ana Moser por André Fufuca (PP) no Esporte e indicando
Silvio Costa Filho (Republicanos) para Portos e Aeroportos.
O apetite dos partidos é um fator de
instabilidade adicional para a ineficiência, um nó a mais numa já vasta,
heterogênea e disfuncional coalizão que marca o atual mandato. Como mostrou o
cientista político Carlos Pereira no Estadão, a coalizão de Lula tem hoje
18 partidos, enquanto seus dois governos anteriores tinham 8 e 9 partidos,
respectivamente. É mais amplo em quantidade, mais heterogêneo na ideologia e
mais desproporcional na distribuição da Esplanada dos Ministérios. O PT tem 43%
das pastas (17) e apenas 13% das cadeiras na Câmara, número que traduz a
histórica incapacidade petista de dividir o poder com aliados.
Se o presidente mudará o comando de todas as
áreas reconhecidamente ineficientes, ainda é difícil saber, até porque, se essa
razão prevalecesse, no limite ele precisaria começar a reforma por si mesmo, o
que obviamente não fará. A esta altura, nominar demissionários e eventuais
substitutos é o menos importante, sobretudo diante das razões que justificam as
mudanças. O certo mesmo é o inevitável ceticismo acerca de um possível – e cada
vez menos improvável – aprendizado de Lula para os erros que ele próprio cometeu
até aqui.
A credibilidade do STF em queda livre
O Estado S. Paulo
Ignorando críticas de corporativismo,
ativismo e partidarismo, a Corte diz que está ‘salvando a democracia’ e
‘civilizando o País’. Mas a percepção popular parece ser a de que faz o oposto
Em sua posse como presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), em setembro de 2023, Luís Roberto Barroso citou sua
fórmula predileta para descrever a magistratura – a “vanguarda iluminista que
empurra a história na direção do processo civilizatório” – e a ilustrou com uma
lista de prioridades: combate à pobreza, desenvolvimento sustentável, liderança
ambiental do Brasil e investimentos em educação, ciência, saneamento e moradia.
Com altas autoridades, celebridades e magnatas, a festa que se seguiu consumou
a autocelebração da Corte. Pudera: os ministros não se cansam de repetir que o
STF “salvou a democracia”. Parecia chegado o momento de reformá-la.
No entanto, em dois anos, a credibilidade da
Corte despencou. Segundo pesquisa do PoderData, o contingente de brasileiros
que consideram o desempenho do STF “ótimo” ou “bom” diminuiu de 31% para 12%.
Os que consideram “ruim” ou “péssimo” passaram de 31% para 43%. A pesquisa não
indaga as razões. Mas este jornal tem algumas hipóteses.
A percepção de que as cortes judiciárias são
cortes aristocráticas conta muito. Os juízes, que deveriam garantir que a lei
seja igual para todos, são especialistas em pervertê-la a seu favor. Com o teto
constitucional de remuneração depredado sob a complacência da Corte
constitucional, o céu é o limite para a concentração de benefícios
inimagináveis para o resto do funcionalismo, e ainda mais para os cidadãos
comuns, que bancam o Judiciário mais caro do mundo.
Mas o subdesenvolvimento não se improvisa e
esse patrimonialismo não é obra de dois anos, mas de décadas. De resto, outras
pesquisas mostram que o descrédito do STF é maior que o do Judiciário. Logo, há
de haver outras razões para ele.
Uma delas é o afã pelos holofotes. Sentenças
são anunciadas fora dos autos, até antes dos autos. Convescotes com poderosos
de Brasília ou empresários são propagandeados como “discussões sobre o Brasil”,
mas não poucos brasileiros leem nas entrelinhas lobby e conflito de interesses.
Quem dera os ministros quisessem só
“discutir” o Brasil e não reconfigurá-lo. Ora atuando como moderador entre os
outros Poderes, ora extrapolando suas competências, o STF age como um poder
imperial, determinando ao Executivo políticas públicas (de câmeras em uniformes
policiais até o modo de combater incêndios ou abrigar moradores de rua) e
dispondo-se a reescrever leis (sobre aborto, drogas, internet e demarcação de
terras indígenas, entre outros temas).
Mas quem dera a Corte só se intrometesse nos
afazeres dos representantes eleitos, sem favorecer lados. No entanto,
garantismo e punitivismo flutuam ao sabor da conveniência partidária.
Condenações de réus confessos pela Operação Lava Jato são anuladas a rodo. A
Lei das Estatais, criada após esses escândalos, foi temporariamente suspensa
para que o governo lulopetista forrasse empresas estatais com correligionários.
O vale-tudo “contra a corrupção” do lavajatismo renasceu mais forte no
vale-tudo “pela democracia” dos inquéritos intermináveis e sigilosos contra
bolsonaristas. Mesmo críticos que nada têm a ver com o bolsonarismo são
censurados como “extremistas” e suas críticas são tomadas como “ataques às
instituições”.
Patrimonialismo, paternalismo,
corporativismo, protagonismo, autoritarismo, partidarismo quadram mal com a
sobriedade e a imparcialidade que se esperam da Justiça, e a reprovação popular
parece decorrer disso.
Viradas de ano são propícias para rever
posições e corrigir rumos. A época do Natal evoca palavras do Evangelho:
médico, cura-te a ti mesmo. Os ministros fariam bem em se ocupar menos com os
ciscos nos olhos dos outros Poderes e mais com as traves nos seus. A “vanguarda
iluminista” do Supremo pode ignorar olimpicamente conselhos como esses e também
o sentimento público. Mas, se continuar semeando vento, que não se surpreenda
quando colher tempestade.
Tragédia que não chama a atenção
O Estado de S. Paulo
O caos no Sudão, negligenciado pelo mundo,
pode deflagrar uma guerra regional
Em 2006, milhares de pessoas em Washington
protestaram com celebridades e políticos contra o genocídio em Darfur, no
Sudão, perpetrado pelo ditador Omar al-Bashir contra etnias não árabes. “Se nos
importarmos, o mundo se importará”, disse o então senador Barack Obama. Seu
colega Joe Biden instou a intervenção da Otan. O Conselho de Segurança da ONU
impôs embargos e sanções, o Tribunal Penal Internacional deu ordem de prisão a
Bashir, a ONU e a União Africana despacharam uma força de paz. Hoje, a história
está se repetindo, mas o mundo dá as costas ao Sudão.
As crises humanitárias na Ucrânia ou em Gaza
são pavorosas, mas, dadas as suas implicações geopolíticas, atraem os holofotes
planetários. Já a pior e mais desesperada das crises em 2024, e que deve se
agravar em 2025, passa despercebida.
Desde a independência, em 1956, o Sudão
sobrevive a ciclos de golpes e guerras civis, incluindo a que o fracionou,
criando o Sudão do Sul, em 2011. Após uma revolta popular ter derrubado Bashir
em 2019, o país entrou numa rota tênue para a democracia. Mas em 2021, as
Forças Armadas do Sudão (SAF) e o grupo paramilitar Forças de Suporte Rápido
(RSF) tomaram o poder do governo civil de transição. A deterioração dessa
parceria se intensificou até explodir numa guerra civil, em 2023.
Estima-se que até 150 mil tenham morrido, 12
milhões tenham se deslocado e 3,2 milhões, fugido do país. Quase 80% dos
hospitais não estão funcionando. Metade da população, 25 milhões, precisa de
socorro humanitário; 750 mil estão à beira da inanição. Ambos os lados são
acusados de bloquear auxílio humanitário e de saques, estupros e execuções de
civis. A RSF, dissidente das milícias de Bashir, já praticou limpeza étnica e
dá sinais de que iniciará – se já não iniciou – outro genocídio em Darfur, caso
conquiste as últimas fortalezas da SAF na região.
“O pior dos cenários no Sudão é uma versão de
20 a 25 anos da Somália com esteroides”, disse Tom Perriello, o enviado
especial dos EUA, à revista Foreign Policy, referindo-se ao país africano
que se tornou sinônimo de catástrofe humanitária. “A velocidade com que esse
conflito pode ir de uma guerra entre dois lados para sete ou oito lados,
sugando países vizinhos” pode torná-la “ainda pior que uma Líbia 2.0″, em
referência a outro país africano que está em guerra civil desde 2014.
Egito e Arábia Saudita apoiam a SAF, que tem
estreitado laços com Irã e Rússia. A RSF é apoiada pelos Emirados Árabes e pelo
vizinho Chade, e emprega mercenários russos. Os piores problemas da África
podem infectar o Oriente Médio e vice-versa.
Um cessar-fogo não está no horizonte, mas
pode despontar com mobilizações entre esses apoiadores, dos quais depende a
ajuda humanitária. Será preciso desenhar sanções especialmente duras para a RSF
em Darfur. A guerra civil pode se tornar uma guerra regional. A degradação do
controle do narcotráfico, as pressões migratórias e novos refúgios para
terroristas islâmicos teriam impacto global.
Na revolução de 2019, protestos em todo o mundo repetiam um canto: “Não são as balas que o povo do Sudão teme, é o silêncio do mundo”. Esse silêncio já é cúmplice de muitas mortes e, caso se perpetue, imporá um custo brutal à África e a todo o mundo.
Segurança não pode ser refém da mesquinharia
Correio Braziliense
O decreto do governo federal não tem a
arrogância de ser definitivo. Mas abre uma boa e necessária discussão,
infelizmente contaminada por interesses eleitorais
A preocupação com a segurança pública não
passa de um discurso eleitoral dos governantes, seja para dar ao eleitor a
impressão de que o combate à criminalidade é uma prioridade na gestão pública,
seja para acenar às corporações do setor, reforçando-lhes quase sempre os
vícios e as virtudes cada vez mais escassas. Entende-se isso ao observar a
discussão em torno do decreto do governo federal sobre o uso da força em
operações policiais. Governadores de oposição acusam o Ministério da Justiça e
o Palácio do Planalto de interferirem nas políticas de segurança dos estados.
Mas esse aparato está funcionando tão bem
assim a ponto de rechaçarem completamente os termos do decreto? Ou o que está
falando mais alto são os interesses políticos — uma vez que essas corporações
têm capilaridade eleitoral e interesses a defender nos Poderes Legislativo e
Executivo? O noticiário de poucas semanas atrás trouxe uma sequência de ações
brutais da Polícia Militar de São Paulo — em uma delas, uma idosa foi agredida
dentro da própria casa e, noutra, um homem foi jogado em um córrego, de cima de
uma ponte.
Da mesma forma, as operações policiais no Rio
de Janeiro estão longe de serem exemplos de eficiência. Primeiramente, porque,
não raro, tornam-se chacinas. Em segundo, porque apesar de tamanha violência,
não impediram o avanço do tráfico nem o surgimento das milícias. E, em
terceiro, porque sucedem-se os registros nos quais suspeitos são detidos apenas
por causa da cor da pele — ou seja, exercícios explícitos de racismo.
Ações brutais, porém, não são exclusividade
de unidades da Federação governadas pela oposição. Mas, na atual discussão, há
uma grande diferença em relação às anteriores: os governadores do Consórcio
Nordeste deram apoio à iniciativa federal, da mesma forma que ex-ministros da
Justiça se manifestaram favoravelmente a ela. Isso representa que o decreto, se
não tem os predicados necessários para conter a violência nem intimidar as
facções criminosas, ao menos chama a atenção para o fato de que muita gente tem
morrido porque as forças de segurança perderam a capacidade de diferenciar o
bandido do cidadão — sobretudo aquele que vive nas comunidades mais pobres — e
não são exemplos de profissionalismo — a contaminação politiqueira que as
assola confirma isso.
O decreto do governo federal não tem a arrogância de ser definitivo. Mas abre uma boa e necessária discussão, infelizmente contaminada por interesses eleitorais. Segurança pública é um tema que pertence à sociedade e cabe a ela como um todo discutir — cada ator expõe seu ponto de vista, todos em busca de um consenso. A captura por nichos ideológicos amesquinha um assunto de imensa relevância. E afasta as soluções inteligentes.
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