O Globo
Não se pode esperar racionalidade na Casa
Branca de hoje. Nem achar normal o que testemunhamos
As leis da gravidade política têm pouca
serventia quando aplicadas a Donald Trump. Basta lembrar que ele foi reeleito
para a Casa Branca apesar de muitos pesares — um primeiro mandato caótico,
quatro indiciamentos judiciais, dois processos de impeachment, condenação por
34 crimes etc. Ao tomar posse dois meses atrás, sua popularidade alcançou
píncaros inebriantes para quem é chegado a uma megalomania. Além de ele ter
derrotado a democrata Kamala
Harris (alguém ainda se lembra dela?) no colégio eleitoral, Trump
também venceu no voto popular e ainda emplacou maioria republicana nas duas
Casas do Congresso.
Amparado em mandato tão inequívoco, e alimentado por uma corte de bilionários cuja fortuna parece inversamente proporcional a seu amadurecimento humano, o presidente cometeu um erro primário. Tomou a zanga do eleitorado com a inflação e a carestia atribuídas à era Biden como sinônimo de aversão nacional ao tamanho do Estado e do governo.
— O eleitorado estava com raiva, sim, mas não
dos gastos da burocracia federal. A raiva era do preço dos ovos — cravou a
jornalista Molly Jong-Fast.
Entre as inúmeras promessas descabidas feitas
por Trump em campanha, a mais radical e peremptória foi, também, a mais
ilusória e irrealizável:
— A partir do primeiro dia [no poder], vamos
acabar com a inflação e baixar os preços de todos os produtos.
Uma maioria dos eleitores acreditou. Ninguém
cobrou logo no primeiro dia, claro, pois o noticiário ficou entupido pela
exibição de decretos caligrafados com chutzpah pelo presidente.
Passado o primeiro mês, porém, começou a ficar claro que a guerra tarifária,
ciclotímica e cambiante — tida como bala de prata para resolver um punhado de
promessas — embicava para ser tiro no pé. Hoje, o mandatário que prometera tornar
todos os produtos mais baratos em 24 horas viu-se obrigado a falar em “período
de transição” para driblar perguntas sobre uma eventual “recessão”.
Paralelamente, a cavalgada com motosserra
de Elon
Musk como czar do Departamento de Eficiência Governamental (Doge, na
sigla em inglês) começa a provocar insurgências. Passado o choque inicial
diante da extensão do desmonte em curso, com demissões em massa e fechamento de
departamentos inteiros sem critério ou embasamento legal, os primeiros
vestígios de uma sociedade civil não anestesiada vão aparecendo.
Na semana passada, a newsletter progressista
Popular Information — cujo bordão é “somos um time de apenas quatro, mas
podemos incomodar os mais ricos e os mais poderosos” — lançou uma ferramenta de
verificação do que é anunciado. Descobriu que, dos US$ 105 bilhões em cortes de
gastos computados por Musk e repetidos por Trump em discurso no Congresso,
apenas US$ 8,6 bilhões são efetivamente verificáveis. Paul Krugman, Nobel de
Economia e veterano colunista do New York Times recentemente alijado pelo jornal,
também sacode o silêncio. Dias atrás, postou em sua página virtual comentário
ácido:
— Este post, espero, será curto. Em parte
porque minha agenda está apertada e não tenho tempo para análises detalhadas.
Mas também porque não quero análises demais embaçando um ponto muito simples:
os dois homens mais poderosos dos Estados Unidos ficaram completamente loucos.
Não digo isso por discordar de suas ideologias ou por pensar que suas ideias
para políticas públicas são ruins. (...) Tenho plena consciência dos perigos
que envolvem questionar, de longe, a estabilidade mental de alguém, especialmente
num contexto político. Eu mesmo fui alvo desse tipo de afirmação, quando
acusado de estar fora de mim por ter sugerido que o governo de George Bush nos
induzia à guerra baseado em premissas falsas. Mas não vejo outra forma de ver
recentes comentários de Donald Trump e Elon Musk sem concluir que ambos
perderam seu senso de realidade.
Krugman referia-se em particular a uma longa
e delirante postagem de Trump na plataforma Truth Social sobre sua obsessão em
tornar o Canadá o
51º estado americano. E prosseguiu afirmando suspeitar que o próprio Musk sabe
que seu projeto Doge é um desastre. Mas ambos prosseguirão ao arrepio de
quaisquer evidências. E concluiu:
— Republicanos acovardados e democratas
tímidos conseguiram efetivamente dar a Trump e Elon Musk a liberdade de se
tornar a pior versão de si mesmos.
Há o que temer diante de um presidente voraz
e instável em brusca queda de popularidade. Há o que temer diante de um
ególatra ungido a über-poderoso que vê as ações da Tesla sofrerem
queda de 35% desde janeiro e a venda de carros Tesla na Alemanha cair
76% em relação ao ano passado. Não se pode esperar por racionalidade na Casa
Branca de hoje. Nem achar o que estamos testemunhando normal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário