O Estado de S. Paulo
A erosão e a crise do multilateralismo comprometem o potencial de gestão cooperativa no âmbito da interdependência dos Estados
Pesa sobre a inserção internacional do Brasil
a lógica das circunstâncias de relações cambiantes de um mundo de
intensificados conflitos. São conflitos permeados pelas tensões de poder de
alta voltagem que se dão no contexto do caleidoscópio da geopolítica.
Disso são exemplos o andamento da guerra na Ucrânia, guerra de conquista deliberada pela Rússia de Putin, e a intensidade bélica no Oriente Médio, cujo ponto de partida foi o ataque terrorista do Hamas a Israel. São conflitos que têm alcance geral. Apontam para uma renovada presença dos riscos da situação-limite paz/guerra na vida internacional, numa escala distinta dos chamados conflitos de baixa intensidade que emergiram no pós-Segunda Guerra, contidos na sua abrangência pelo precário equilíbrio da dissuasão nuclear da bipolaridade EUA/União Soviética.
A geopolítica, com sua ênfase no controle
político dos espaços, insumos e matérias primas, é um componente das tensões
internacionais, não apenas no campo estratégico-militar. Vem se desdobrando no
campo econômico, na lógica de uma geoeconomia. Esta dá margem à ênfase no
unilateralismo das preocupações dos Estados com sua segurança lato sensu. É o
que coloca entre parênteses o multilateralismo das normas gerais orientadoras
do comércio internacional. Daí, na vigência da geoeconomia, as tendências de
renovados protecionismos de feitio autárquico, às quais Trump dá inequívoco
ímpeto.
Trump, com o decisionismo desrespeitador de
normas de seu modo inamistoso de atuar, vem traçando a vis directiva das
guerras comerciais com sua elevação arbitrária de tarifas. Os demais atores
econômicos vão e estão calibrando, na lógica da reciprocidade da equivalência,
as contramedidas das suas respostas às iniciativas de Trump, com base nos
recursos do poder de seus mercados e da interdependência do mundo. Assim,
intensificam-se também no campo econômico os riscos da vida internacional,
instigando a incerteza de difícil mensuração.
No campo dos valores, as tensões são
multiplicadas pelo efeito da prevalência da geografia das paixões na Torre de
Babel da agenda da opinião pública dos países. Para isso contribuem o advento e
a consolidação dos fundamentalismos e de populismos nacionalistas e xenofóbicos
e a sua rejeição ao “diferente” constitutivo da pluralidade do mundo.
É um dado instigador do aumento dos
“deslocados do mundo” – imigrantes não documentados e refugiados – no espaço
planetário e no seu âmbito as atitudes de lideranças políticas, voltadas para a
corrosão dos valores da democracia e da vigência da tutela dos direitos
humanos.
A máquina do mundo em que estamos inseridos –
porque somos do mundo, e não estamos apenas nele –, como diz Hannah Arendt,
movimenta-se num tempo de “tormenta e vento esquivo”, para recorrer às palavras
de Camões, de múltiplas facetas e da escala planetária que alcança a todos na
interdependente indivisibilidade atual dos campos estratégico-militar,
econômico e dos valores.
O crescente desrespeito das normas do direito
internacional é uma expressão da descontinuidade estrutural em relação ao que
foi elaborado no pós-Segunda Guerra para operar a ordem mundial dentro de certa
“normalidade” de previsibilidade.
A primeira regra de coexistência de uma ordem
internacional interestatal é a da preservação estabilizadora da integridade
territorial de Estados soberanos, consagrada na Carta da ONU. Tem como objetivo
deslegitimar as iniciativas de valer-se de força militar para o que foi o
unilateralismo da ampliação do “espaço vital” de um país – uma das grandes
causas da Segunda Guerra.
A guerra na Ucrânia, conduzida por Putin e
respaldado pela China, está voltada para ampliar o “espaço vital” da segurança
geopolítica de uma grande potência nuclear. É um imenso precedente que coloca
em questão a prévia ordem jurídica internacional. Abre espaço para o
inaceitável da rediscussão da estabilidade das fronteiras. É no clima deste
precedente que Trump se permite falar sobre o Canal do Panamá, o Canadá, a
Groenlândia, a Faixa de Gaza e a cessão de território da Ucrânia para a Rússia.
As normas de mútua colaboração têm como fonte
material a “ideia a realizar” proveniente da necessidade de lidar por meio do
multilateralismo com a dinâmica das interações das sociedades num sistema
internacional interdependente e interligado, não obstante sua heterogeneidade e
suas assimetrias. É uma necessidade óbvia da indivisibilidade do mundo quando
se pensa, por exemplo, em clima e meio ambiente.
A erosão e a crise do multilateralismo
comprometem o potencial de gestão cooperativa no âmbito da interdependência dos
Estados. Abrem espaço para o unilateralismo decisionista de soberanias que
rejeitam se ver circunscritas por normas em função de um autocentrado
solipsismo de curto prazo de seus interesses nacionais. Desconsideram o comitas
gentium da diplomacia. Projetam também uma visão hobbesiana de polarização
generalizada de uma guerra de todos contra todos.
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