quinta-feira, 31 de julho de 2025

Prosseguimento do golpe - Merval Pereira

O Globo

Na visão distorcida de Trump, a ação dos Bolsonaros na tentativa de golpe é uma legítima defesa da democracia, como a dele, que incentivou o ataque ao Capitólio

Se separarmos a negociação comercial da chantagem política, o Brasil conseguiu sair-se bem da primeira, com uma tarifa média bem menor do que estava previsto devido às isenções conseguidas, e ficou num impasse na seara política, pois o que o governo americano quer não é negociável. O destino do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em tese, não entra em negociações políticas. A vingança dos bolsonaristas contra o ministro Alexandre de Moraes causará problemas pessoais para ele e sua família, mas não terá o condão de influir no veredito.

Nem mesmo a chantagem implícita no aviso do secretário de Estado Marco Rubio de que os juízes brasileiros não podem se resguardar nas suas togas mudará a tendência à condenação, pois as provas são evidentes, e o crime gravíssimo. A crise nas relações de Brasil e Estados Unidos, no entanto, só faz escalar, numa proporção que não se imagina aonde chegará. O ataque ao juiz do Supremo é um ataque a um dos Poderes da República, não pode ser entendido como uma sanção pessoal.

A inclusão de Alexandre de Moraes na Lei Magnitsky, usada para combater terrorismo e narcotráfico, é uma violência institucional que não pode deixar de ser respondida, embora só tenhamos a retórica para expressar nossa indignação. Até mesmo a Lei de Reciprocidade terá de ser usada cautelosamente, diante das isenções conseguidas, que, frise-se, só saíram para beneficiar as empresas americanas envolvidas. Os documentos oficiais do governo americano tratam o Brasil como uma ditadura truculenta que cerceia cidadãos americanos, deixando como vítimas as big techs e os milicianos digitais brasileiros que se escudam na cidadania americana para atacar o governo brasileiro pelas redes sociais.

Na visão distorcida de Trump, a ação dos Bolsonaros na tentativa de golpe é uma legítima defesa da democracia, como a dele, que incentivou o ataque ao Capitólio. A partir dessa premissa, todas as consequências legais advindas do golpismo são uma tentativa de cercear a liberdade dos “patriotas” que não queriam que os “comunistas” Lula e Biden assumissem o governo de seus países. Um desencontro de datas permitiu que a influência nefasta de Trump não se refletisse na eleição brasileira. Imaginemos, diante dos fatos novos, o que aconteceria se o presidente americano já fosse Trump na época da eleição brasileira. A rejeição internacional a um golpe foi um dos argumentos fortes para que os militares brasileiros não aderissem.

Para os americanos que pensam como Trump, Biden é um democrata esquerdista, e Lula um comunista. As ações de Lula na direção do Sul Global, uma nova versão do que se chamava Terceiro Mundo antigamente, durante a Guerra Fria, ajudam a moldar essa imagem. O Brics, que começou como uma simples reunião de países que se destacavam no cenário econômico internacional como potenciais líderes mundiais em décadas, vem ganhando uma conotação mais politizada, o que irrita Trump. Mas não ao ponto de desencadear essa guerra tarifária contra o Brasil.

Se não fosse o trabalho de sapa dos bolsonaristas Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo, o Brasil estaria fora dessa retaliação comercial. O tarifaço de Trump ao Brasil foi o primeiro a ter uma conotação política explícita ao referir-se à questão jurídica de Bolsonaro. Depois, a Rússia também entrou na lista, como ameaça para acabar a guerra na Ucrânia. Estamos, pois, em um impasse político que aparenta não ter saída. Talvez seja justamente o objeto de desejo oculto dos articuladores bolsonaristas esse prosseguimento da tentativa de golpe, agora com o apoio dos Estados Unidos. Quando (se?) Bolsonaro for condenado à prisão, qual será a reação de Trump? Como parece improvável que ele leve a uma situação aguda de mudança de governo, a perspectiva é que a relação com os Estados Unidos fique permanentemente tensa, até que as eleições decidam o destino do trumpismo e do bolsonarismo.

 

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