sábado, 9 de agosto de 2025

Alarmismo comercial de Trump deve ser ignorado - Fareed Zakaria

O Estado de S. Paulo

EUA prosperaram com livre-comércio, mas presidente e seguidores dizem ter sido vítimas dele

Enquanto um mundo horrorizado assiste à derrocada de uma ordem econômica que lhe trouxe estabilidade e prosperidade por décadas, a pergunta que ouço em cada país é a mesma: por que os EUA, a nação que floresceu tão poderosamente sob este sistema, o está destruindo?

Quando explico que muitos americanos – incluindo o presidente – acreditam que os EUA foram vítimas deste sistema de livre-comércio, a resposta é perplexidade. “Como eles podem não ver o que é óbvio: que eles são os grandes vencedores?”, disse um alto funcionário estrangeiro.

O presidente Trump e o movimento trumpista moldaram essa narrativa com grande sucesso. Mesmo aqueles que se opõem a Trump tendem a admitir que, embora os americanos mais ricos e as maiores empresas tenham tido sucesso nas últimas décadas, a maioria da população viu sua renda estagnar, empregos serem transferidos para o exterior e os padrões de vida declinarem.

Mas nada disso conta a história certa. Mudanças massivas nas políticas públicas que estão transformando o mundo estão sendo feitas com base em uma série de suposições que são anedotas, exageros e mentiras.

O número básico a ter em mente é a “renda mediana”. A “renda média” ( média aritmética de todas as rendas somadas e divididas pelo número de pessoas) é menos reveladora porque as rendas de Elon Musk, Bill Gates e Jeff Bezos elevam essa média. A “renda mediana” é a renda do americano no meio da distribuição de renda: metade do país ganha mais, metade ganha menos.

DISTORÇÕES. A medida da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a renda familiar mediana disponível nos EUA era maior do que em todas as economias industriais avançadas, exceto uma, em 2021 – maior do que Suíça, Alemanha, Reino Unido e Japão. A exceção é o pequeno Luxemburgo. De fato, a renda familiar mediana disponível nos EUA é cerca do dobro da do Japão.

E, como Noah Smith aponta Os americanos raramente se mudam de lugares onde a economia entrou em colapso em um excelente ensaio, a renda mediana dos EUA não está estagnada, como nos diz a sabedoria popular; ela tem crescido rapidamente ao longo das décadas. Smith observa que a renda pessoal mediana real aumentou 50% desde a década de 1970. Os salários por hora, ajustados pela inflação, aumentaram desde a década de 1990. E os salários por hora do terço mais pobre dos americanos aumentaram ainda mais: cerca de 40%.

Sem dúvida, houve rupturas nas últimas décadas. Essa é a natureza do capitalismo. David Autor e outros descreveram um “choque chinês”, no qual cerca de 2 milhões de empregos foram perdidos, entre 1999 e 2011, como resultado da ascensão da China na indústria manufatureira.

O secretário do Tesouro, Scott Bessent, recentemente inflou esse número para 3,7 milhões. Um ensaio para o centro de estudos conservador American Enterprise Institute contesta esse número e lança dúvidas até mesmo sobre os números mais baixos da pesquisa de Autor.

TRANSIÇÃO. Mas o ponto principal é que a rotatividade no mercado de trabalho americano é enorme. Hoje em dia, em média, cerca de 30 milhões de trabalhadores do setor privado perdem seus empregos anualmente, e um número semelhante ganha empregos a cada ano. Durante os anos do choque chinês, os EUA ganharam mais de 2 milhões de empregos no total. E esses não eram empregos de baixa remuneração em fastfood.

Veja Flint, em Michigan, e Greensboro, na Carolina do Norte – frequentemente vistas como cidades clássicas devastadas pela perda da indústria. Nas últimas duas décadas e meia, o crescimento real dos salários dos mais pobres aumentou mais de 40% em Flint e mais de 26% em Greensboro.

Isso não é brincadeira. Em 2018, a Brookings Institution analisou 185 condados industriais urbanos que tinham muitos empregos no setor, em 1970, e descobriu que 115 haviam conseguido fazer a transição da indústria, melhorando o bem-estar dos moradores. Apenas 14 dessas comunidades industriais ainda poderiam ser definidas como “vulneráveis”. Lembre-se de que o desemprego nos EUA está próximo do menor nível em 50 anos há mais de três anos.

Em uma economia tão grande e diversa como a dos EUA, sempre haverá lugares em dificuldades. Parte do que torna esse problema mais urgente é que os americanos agora raramente se mudam de lugares onde a economia entrou em colapso em busca de melhores perspectivas.

Como Yoni Appelbaum observa em seu livro Stuck, os americanos costumavam ter alta mobilidade, sempre em busca de melhores oportunidades. Mas, nas últimas décadas, eles permaneceram no mesmo lugar, na esperança de que melhores perspectivas econômicas chegassem até eles.

Appelbaum observa uma estatística impressionante sobre a corrida presidencial de 2016: “Entre os eleitores brancos que se mudaram a mais de duas horas de sua cidade natal, Hillary Clinton teve uma sólida vantagem de 6 pontos porcentuais. Aqueles que moravam a menos de duas horas de carro, no entanto, apoiaram Trump por 9 pontos. E aqueles que nunca haviam saído de sua cidade natal o apoiaram por impressionantes 26 pontos.”

FUTURO. Esses números pintam um quadro diferente da natureza da turbulência política nos EUA. Mudanças e rupturas – causadas pelo capitalismo, pela globalização, pela tecnologia ou, crucialmente, por uma cultura em transformação – produziram enorme ansiedade entre muitos. Há aqueles que consideram essas ansiedades insuportáveis e desejam que o mundo volte a ser o que era antes. Mas – com ou sem tarifas – isso não acontecerá.

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