Chega, caros leitores, de falar sobre as estripulias de Donald Trump ou sobre a instabilidade política e institucional que ameaça a democracia brasileira. As crises conjunturais têm o condão de nos tirar atenção daquilo que realmente importa: as necessidades reais e básicas da maioria da população. Há enormes lacunas no Brasil que envolvem o cotidiano das pessoas nos campos da saúde, educação, moradia, saneamento, segurança, segurança alimentar, renda e emprego. E só temos tempo para discutir as ameaças e bravatas do Dr. Trump, as posturas do STF, as reações do ex-presidente, as repercussões no Congresso. Ou, qual a bolha ideológica irá radicalizar mais e nos alimentar de incertezas crescentes e informações parciais?
Chamo este artigo de “palpites” porque estou destreinado, enferrujado. Afinal, faz mais de quinze anos que deixei a Secretaria de Saúde de Minas Gerais, que tive a honra de dirigir, acompanhado por uma equipe excepcional, de 2003 a 2010 - período mais feliz e produtivo de minha vida pública - e que deixou um legado até hoje referência nacional.
O SUS – nunca é demais
repetir – é uma ousada e vitoriosa aposta feita pelos nossos constituintes de
1988. Cheio de gargalos e imperfeições, garante acesso de todos os brasileiros
ao conjunto de cuidados necessários para promover, restaurar e manter a saúde
da população. Às vezes falha, mas o direito de cidadania está previsto e a
tentativa de cumprir o mandamento constitucional é uma busca permanente. As
demandas são infinitas e o dinheiro é curto. Mas há sempre espaço para aumentar
a eficiência da gestão mesmo em regime de escassez, e aumentar a produtividade
dos recursos públicos aplicados.
O que me chamou atenção e
motivou este artigo foi o lançamento do programa “AGORA TEM ESPECIALISTAS” pelo
Governo Federal como mais importante programa de saúde do ciclo 2023/2026.
Aprendi com o meu guru
sanitarista, Eugênio Villaça, que o objetivo central de gestores e
profissionais de saúde é a construção de redes integradas de atenção.
Traduzindo para os não especialistas: um bom sistema de saúde deve ter fluidez,
efetividade e conexão entre a atenção primária de qualidade (maestro da
orquestra e porta de entrada do sistema para o cidadão, com a prevenção e
intervenção curativa em cada bairro ou distrito do Brasil, através da
estratégia da saúde da família), a atenção secundária (consultas especializadas
e exames de imagem e laboratoriais) e a atenção terciária (rede hospitalar para
internações, cirurgias e tratamentos).
Esse tripé deve escoltado por uma boa política de assistência
farmacêutica e pelas ações de vigilância em saúde (vacinação e combate a
endemias, principalmente).
Quando o Ministério da Saúde
confere protagonismo ao AGORA TEM ESPECIALISTAS, alguma coisa está errada.
Primeiro, porque os especialistas nunca estiveram ausentes, pelo menos em Minas
e seus consórcios intermunicipais. Segundo, porque joga o foco em soluções
temporárias para um elo intermediário da cadeia assistencial, abrindo mão de
enfrentar o desafio de construção de uma rede integrada.
O protagonismo deve ser
sempre e inequivocamente da qualificação da atenção primária – centro de gravidade
coordenador da rede integrada. A literatura diz que 80% das demandas da
população deveriam ser resolvidas neste nível de atenção à saúde. Temos
hoje 53.795 equipes de saúde da família espalhadas por todo o Brasil. Mas
estamos longe de cumprir a meta que a literatura prescreve. Problemas graves de
qualidade e organização impedem que a atenção primária cumpra plenamente seu
papel (precariedade na formação dos profissionais médicos, ausência de uma
carreira nacional que fixe e motive o médico de família, infraestrutura ruim,
ausência de programas de educação permanente e de apoio de telemedicina, metas
claras com prêmio por desempenho etc.). A ênfase da política pública e o foco
dos gestores deveriam estar aqui.
Além disso, creio que é
preciso ter uma abordagem mais ampla da atenção secundária e terciária. Nossa
experiência em Minas, indicou que além da prioridade absoluta para a
organização eficaz da atenção primária, é preciso um modelo correto de
organização da rede de especialistas e do sistema hospitalar, diante de uma
teia de 5.569 municípios brasileiros, heterogêneos e desiguais da escala
populacional à capacidade de resposta. Existem municípios com 3 ou 4 mil
habitantes espalhados no território de um país continental com extrema
diversidade econômica, social e cultural, e existe a cidade de São Paulo com
seus 11 milhões e meio de habitantes. Organizar uma rede assistencial integrada
não é tarefa fácil e trivial. A atenção primária de qualidade e as ações de
vigilância em saúde têm que estar presentes em cada cantinho do Brasil, seja
numa aldeia indígena no interior da floresta amazônica ou na periferia
paulistana. Mas chegamos à conclusão de que a melhor resposta para o SUS na
atenção secundária num sistema municipalizado, são os consócios intermunicipais
de saúde localizados nos polos regionais de saúde. Já na atenção terciária, a
organização, com incentivos e regulação efetiva, de uma rede de hospitais,
preferencialmente filantrópicos ou geridos por organizações sociais, a partir
da hierarquização de papéis, escala adequada e solidariedade pactuada. Isto
tudo suportado por sistemas eficientes de transporte sanitário, classificação
de risco e regulação de acesso.
O programa AGORA TEM
ESPECIALISTA resgata uma velha ideia com roupagem nova, visando atacar
topicamente o gargalo na oferta de consultas especializadas e exames, comprando
serviços na rede privada, que tenha capacidade ociosa, mediante renúncia
fiscal. É bom, mas não é estruturante. Serra fez isso com os mutirões no
Ministério da Saúde e Dória com o paulistano CORUJÃO DA SAÚDE, ambos com
recursos orçamentários.
Não há saídas simples para problemas complexos. Só as redes integradas, ancoradas numa qualificada atenção primária, podem assegurar os avanços necessários, memo em ambiente de escassez orçamentária, para cumprirmos a tarefa inscrita na Constituição brasileira de 1988 e sonhada pelo movimento da reforma sanitária dos anos 80.
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