O Globo
Foi obra de ninguém o incêndio provocado por
um curto-circuito num aparelho de ar-condicionado instalado em contêineres
improvisados como quartos
Três décadas e meia após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nascer e crescer no Brasil — em particular no Rio de Janeiro — continua um risco. Brasileirinhas e brasileirinhos seguem mais expostos à fome, à pobreza e até aos efeitos das mudanças climáticas — frio e calor extremos estão associados a maior mortalidade infantil, como atesta estudo recém-divulgado pela Fiocruz. Vivem em perigo, especialmente se pretos, periféricos, de baixa renda. Mortos, escancaram a impunidade que é traço do país, como aconteceu no caso das dez vítimas do incêndio na concentração do Flamengo, um ninho tornado armadilha.
O juízo da 36ª Vara Criminal da capital
absolveu, por falta de provas, os sete últimos réus no processo que apurou
responsabilidades pelo incêndio no alojamento das categorias de base, em
fevereiro de 2019 — quatro já tinham sido excluídos. A tragédia no Ninho do
Urubu deixou dez atletas mortos (Pablo, Jorge Eduardo, Vítor, Gedson, Samuel,
Arthur, Rykelmo, Athila, Christian e Bernardo) e três feridos. O juiz Tiago
Fernandes de Barros considerou que nem a Polícia Civil nem o Ministério Público
foram capazes de provar a responsabilidade dos acusados. A perícia tampouco
fora conclusiva.
— Quando a dúvida nasce do próprio saber
especializado, a absolvição é não apenas justa, mas juridicamente necessária —
escreveu na sentença.
Assim, seis anos depois, restam dez vidas
ceifadas e nenhum culpado. Foi obra de ninguém o incêndio provocado por um
curto-circuito num aparelho de ar-condicionado instalado em contêineres
improvisados como quartos, com janelas gradeadas. Tudo isso numa propriedade do
mais rico clube de futebol do país. A mensagem da Justiça é tão óbvia quanto
injusta e cruel: as jovens existências abreviadas não importam; vida que segue;
foi fatalidade; que pena; o show tem de continuar; segue o jogo.
A associação de familiares manifestou
“profundo e irrevogável protesto”. O MP prometeu recorrer. A jornalista Daniela
Arbex, autora de “Longe do ninho”, livro sobre o crime, finalista do Prêmio
Jabuti 2025 na categoria biografia e reportagem, escreveu numa rede social que
o desfecho (espera-se, parcial) é o retrato do Brasil:
— Um país que é condescendente com os poderes
vigentes, que não possui cultura de prevenção, que é negligente quando o
assunto é segurança e, principalmente, responsabilização dos autores das
tragédias. A falta de justiça num país tão carente de representação não
alimenta só a impunidade. É um salvo-conduto para crimes futuros.
A impunidade é infelizmente regra, não
exceção. Inquéritos longos e capengas, denúncias mal formuladas, julgamentos
espúrios multiplicam-se em assassinatos de crianças e adolescentes. Um breve
esforço de memória faz emergir um punhado de casos. Eduardo de Jesus, 10 anos,
foi morto com um tiro de fuzil na cabeça, na porta de casa, no Morro do Alemão
(Rio de Janeiro, RJ), em 2015. Meses depois do crime, o processo contra dois
PMs foi arquivado. Um ano atrás, pelo esforço de uma mãe incansável, Terezinha
Maria de Jesus, o caso foi reaberto pelo MP.
A menina Ágatha Félix foi atingida por um
tiro de fuzil disparado por um PM, no Complexo do Alemão (Rio, RJ), em setembro
de 2019. Ano passado, um júri composto por cinco homens e duas mulheres
absolveu o réu. O adolescente João Pedro Pinto foi baleado e morto em casa, no
Complexo do Salgueiro (São Gonçalo, RJ), durante mal explicada operação
policial, em maio de 2020, em plena pandemia. Os três policiais acusados foram
absolvidos sumariamente em julho de 2024. Em junho passado, a pedido da
Defensoria Pública do Rio, o TJ anulou a sentença e determinou que os réus vão
a júri popular.

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