sábado, 25 de outubro de 2025

O time da impunidade, por Flávia Oliveira

O Globo

Foi obra de ninguém o incêndio provocado por um curto-circuito num aparelho de ar-condicionado instalado em contêineres improvisados como quartos

Três décadas e meia após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nascer e crescer no Brasil — em particular no Rio de Janeiro — continua um risco. Brasileirinhas e brasileirinhos seguem mais expostos à fome, à pobreza e até aos efeitos das mudanças climáticas — frio e calor extremos estão associados a maior mortalidade infantil, como atesta estudo recém-divulgado pela Fiocruz. Vivem em perigo, especialmente se pretos, periféricos, de baixa renda. Mortos, escancaram a impunidade que é traço do país, como aconteceu no caso das dez vítimas do incêndio na concentração do Flamengo, um ninho tornado armadilha.

O juízo da 36ª Vara Criminal da capital absolveu, por falta de provas, os sete últimos réus no processo que apurou responsabilidades pelo incêndio no alojamento das categorias de base, em fevereiro de 2019 — quatro já tinham sido excluídos. A tragédia no Ninho do Urubu deixou dez atletas mortos (Pablo, Jorge Eduardo, Vítor, Gedson, Samuel, Arthur, Rykelmo, Athila, Christian e Bernardo) e três feridos. O juiz Tiago Fernandes de Barros considerou que nem a Polícia Civil nem o Ministério Público foram capazes de provar a responsabilidade dos acusados. A perícia tampouco fora conclusiva.

— Quando a dúvida nasce do próprio saber especializado, a absolvição é não apenas justa, mas juridicamente necessária — escreveu na sentença.

Assim, seis anos depois, restam dez vidas ceifadas e nenhum culpado. Foi obra de ninguém o incêndio provocado por um curto-circuito num aparelho de ar-condicionado instalado em contêineres improvisados como quartos, com janelas gradeadas. Tudo isso numa propriedade do mais rico clube de futebol do país. A mensagem da Justiça é tão óbvia quanto injusta e cruel: as jovens existências abreviadas não importam; vida que segue; foi fatalidade; que pena; o show tem de continuar; segue o jogo.

A associação de familiares manifestou “profundo e irrevogável protesto”. O MP prometeu recorrer. A jornalista Daniela Arbex, autora de “Longe do ninho”, livro sobre o crime, finalista do Prêmio Jabuti 2025 na categoria biografia e reportagem, escreveu numa rede social que o desfecho (espera-se, parcial) é o retrato do Brasil:

— Um país que é condescendente com os poderes vigentes, que não possui cultura de prevenção, que é negligente quando o assunto é segurança e, principalmente, responsabilização dos autores das tragédias. A falta de justiça num país tão carente de representação não alimenta só a impunidade. É um salvo-conduto para crimes futuros.

A impunidade é infelizmente regra, não exceção. Inquéritos longos e capengas, denúncias mal formuladas, julgamentos espúrios multiplicam-se em assassinatos de crianças e adolescentes. Um breve esforço de memória faz emergir um punhado de casos. Eduardo de Jesus, 10 anos, foi morto com um tiro de fuzil na cabeça, na porta de casa, no Morro do Alemão (Rio de Janeiro, RJ), em 2015. Meses depois do crime, o processo contra dois PMs foi arquivado. Um ano atrás, pelo esforço de uma mãe incansável, Terezinha Maria de Jesus, o caso foi reaberto pelo MP.

A menina Ágatha Félix foi atingida por um tiro de fuzil disparado por um PM, no Complexo do Alemão (Rio, RJ), em setembro de 2019. Ano passado, um júri composto por cinco homens e duas mulheres absolveu o réu. O adolescente João Pedro Pinto foi baleado e morto em casa, no Complexo do Salgueiro (São Gonçalo, RJ), durante mal explicada operação policial, em maio de 2020, em plena pandemia. Os três policiais acusados foram absolvidos sumariamente em julho de 2024. Em junho passado, a pedido da Defensoria Pública do Rio, o TJ anulou a sentença e determinou que os réus vão a júri popular.

 

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