CartaCapital
A pregação religiosa na televisão aberta
ultrapassa os limites da fé e afronta o Estado de Direito
Mesmo com o inquestionável avanço da
internet, podemos afirmar que a televisão aberta continua sendo um dos meios de
informação e entretenimento mais democráticos e acessíveis à população
brasileira. Democrático em essência, dado que as emissoras atuam mediante
concessão de um serviço público. Não por acaso, precisam seguir regras e
determinações condizentes com um Estado Democrático de Direito e de sua
Constituição Federal, que o caracteriza como laico.
A prerrogativa da liberdade que define o regime de governo brasileiro se estende ao campo religioso. Dessa maneira, é contraditório que emissoras sigam operando mesmo depois de vender grande parte de seu tempo de programação para igrejas de uma mesma vertente de crença. Essa apropriação do conteúdo televisivo torna-se ainda mais problemática quando notadamente percebemos que aquilo que seria, a princípio, uma questão de fé, se transfigura em influência política.
Na esteira dessas distorções, foi aprovado,
em 2022, o Projeto de Lei nº 5479/2019, que resultou na Lei nº 14.408/2022. Ela
assegura às emissoras a possibilidade de vender até a totalidade de sua
programação para a produção independente, desde que mantenham o controle sobre
a qualidade do que é veiculado. Antes havia a instrução do Ministério Público
de que conteúdos como o religioso se enquadravam como publicitários, o que os
limitava a até 25% do espaço passível de ser comercializado pelos canais. A
nova lei restringe o conceito de publicidade à promoção de produtos e serviços
e de marca e imagem de empresas. Com isso, a venda de tempo televisivo para
instituições religiosas, ironicamente, tornou-se ilimitada.
Antes dessa virada de mesa, algumas emissoras
se viam ameaçadas de perder suas concessões por descumprir o teor da legislação
então vigente, ultrapassando o teto na cessão de tempo de veiculação para
igrejas. Os canais já argumentavam que não se tratava de venda de espaço para
publicidade comercial, pleiteando que programas religiosos não poderiam ser
comparados a um conteúdo de cunho mercadológico. Muitas decisões judiciais
embarcaram nessa tese e, assim, deixaram de punir as emissoras por
descumprimento das regras. A Lei nº 14.408/2022 chancelou, portanto, esse
entendimento.
Vamos, então, retomar alguns aspectos
cruciais para compreender as violações implicadas nessa trama. Já chamei a
atenção para o caráter laico do Estado, que é corrompido quando um dos serviços
prestados à população se destina, em sua grande maioria, a uma mesma vertente
religiosa, subvertendo o princípio da laicidade.
É preciso destacar também que, em alguns
casos, a receita proveniente desses programas religiosos consiste no grosso
substancial de arrecadação da emissora, o que, em grande medida, torna nebulosa
a justificativa de que não se trata de conteúdo comercial. Se não o é
estritamente em natureza conteudística, não o deixa de ser em finalidade
orçamentária.
Há, também, uma questão bastante delicada
nesse imbróglio, que transcende a esfera do propósito espiritual ou de crença –
o qual seria ou deveria ser o intento último de um programa de tevê dessa
natureza. Levantamento recente do UOL puxou o fio de interferências de
parlamentares diretamente interessados na aprovação do Projeto de Lei que
passou a permitir maiores porcentuais de cessão de espaços televisivos para programas
religiosos. Trata-se de um lobby no Congresso que, segundo a reportagem do
portal, envolveu políticos ligados a igrejas e contou até mesmo com o apoio da
Associação Brasileira de Rádio e Televisão.
Quando o discurso da fé deliberadamente
invade o terreno dos ideais e interesses políticos, sem contar os econômicos, o
golpe imposto aos preceitos de um Estado Democrático de Direito é ainda mais
profundo.
Esse balaio de conveniências ganha novos
contornos ardilosos com as recentes aproximações de pregadores evangélicos
norte-americanos com pastores brasileiros. A ideologia do trumpismo busca,
assim, avançar pelos flancos da fé. Nessa empreitada, pode congregar aliados
que tenham, a seu dispor, um espaço televisivo privilegiado, que nunca deveria
ser destinado à pregação política.
Para os que creem, legitimamente, em alguma
vertente de evolução espiritual, trata-se de um mau uso da palavra. Para todos
os brasileiros, indistintamente, significa mais uma afronta ao Estado
Democrático de Direito.
Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.

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