O Globo
Não se espere que qualquer dos dois governos
mude de posição ideológica, mas que encontrem um caminho de negociação benéfico
para os interesses comerciais dos dois lados.
A conversa telefônica de Lula com Trump é um evidente sinal de que o governo brasileiro superou com galhardia o obstáculo formidável que as manobras bolsonaristas em Washington colocaram no caminho da relação dos dois governos, numa tentativa de se aproveitar da ignorância americana sobre o que se passa em nosso país para inviabilizar o governo petista. Claro que apenas em momentos incomuns dois brasileiros sem o menor compromisso com o país, e sem a menor importância política, poderiam ter chegado a tanto. Incomum este momento pela figura que está à frente do governo americano. Trump pretende descontar em alguns meses os anos em que ficou no poder anteriormente e não sabia como manipular os cordéis do verdadeiro poder da Casa Branca, controlado — soube-se no decorrer do governo e sobretudo depois — por servidores públicos que tinham a exata noção do dever.
Hoje, eleito pela segunda vez e aspirando a
uma terceira, impedida pela Constituição americana, Trump procura ampliar seu
espaço de poder e vem encontrando pouca resistência das instituições
democráticas de seu país, que pareciam funcionar melhor que na realidade. Os
interesses comerciais e econômicos foram o ponto fulcral da conversa de ontem
entre os dois presidentes. Isso foi dito pelo próprio Trump, que havia colocado
a questão política indevidamente no centro das negociações para tentar salvar o
ex-presidente Bolsonaro.
Os bolsonaristas insistem na única esperança
que lhes resta: ver na indicação do secretário de Estado Marco Rubio para
centralizar as negociações com as autoridades brasileiras uma indicação de que
será uma conversa dura com aquele que representa a linha dura do governo Trump.
De fato, de uma família cubana que fugiu por temer a ascensão de Fidel Castro,
o chanceler americano é um radical anticomunista, que ainda vê comunistas
embaixo da cama. Suas referências sobre Lula não devem ser das melhores, não
apenas pela boa relação que os governos petistas têm com a ditadura cubana,
como pelos atos que daí advêm, como o Foro de São Paulo, que Lula fundou ao
lado de Castro e demais líderes de esquerda da América Latina.
Claro que essa brecha já deve estar sendo
aproveitada pelos brasileiros que fazem trabalho de sapa em Washington para
incentivar a ação mais direta do governo Trump contra o governo brasileiro. Mas
Trump, como se sabe, é um negociador que só aceita ganhar, e os argumentos
financeiros das empresas brasileiras e americanas que têm interesses comuns nos
dois mercados falam mais alto no momento. Não se espere que qualquer dos dois
governos mude de posição ideológica, mas que encontrem um caminho de negociação
benéfico para os interesses comerciais dos dois lados.
Teremos muitos outros embates pela frente,
pois não é do feitio de Trump conviver com ideias opostas às dele, a não ser
que o adversário seja uma China ou uma Rússia, contra os quais não adianta
apenas arreganhar os dentes. Não tenho dúvida de que, na eleição do ano que
vem, a direita brasileira terá o apoio de Trump contra a reeleição de Lula. Mas
o presidente brasileiro não declarou que preferia a vitória de Kamala Harris
sobre Trump nos Estados Unidos? O problema não está nas preferências pessoais
dos presidentes, mas na manipulação política das informações para interferir
nas eleições ou nas relações comerciais entre os países.
Houve momento recente em que a América Latina
era amplamente dominada por governos de esquerda. Hoje a tendência é contrária.
Faz parte da prática democrática. O que não pode é acontecer o que houve no
Brasil e nos próprios Estados Unidos, uma tentativa de golpe de Estado para
impor governos autoritários.
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