terça-feira, 7 de outubro de 2025

Negócios à parte. Por Merval Pereira

O Globo

Não se espere que qualquer dos dois governos mude de posição ideológica, mas que encontrem um caminho de negociação benéfico para os interesses comerciais dos dois lados.

A conversa telefônica de Lula com Trump é um evidente sinal de que o governo brasileiro superou com galhardia o obstáculo formidável que as manobras bolsonaristas em Washington colocaram no caminho da relação dos dois governos, numa tentativa de se aproveitar da ignorância americana sobre o que se passa em nosso país para inviabilizar o governo petista. Claro que apenas em momentos incomuns dois brasileiros sem o menor compromisso com o país, e sem a menor importância política, poderiam ter chegado a tanto. Incomum este momento pela figura que está à frente do governo americano. Trump pretende descontar em alguns meses os anos em que ficou no poder anteriormente e não sabia como manipular os cordéis do verdadeiro poder da Casa Branca, controlado — soube-se no decorrer do governo e sobretudo depois — por servidores públicos que tinham a exata noção do dever.

Hoje, eleito pela segunda vez e aspirando a uma terceira, impedida pela Constituição americana, Trump procura ampliar seu espaço de poder e vem encontrando pouca resistência das instituições democráticas de seu país, que pareciam funcionar melhor que na realidade. Os interesses comerciais e econômicos foram o ponto fulcral da conversa de ontem entre os dois presidentes. Isso foi dito pelo próprio Trump, que havia colocado a questão política indevidamente no centro das negociações para tentar salvar o ex-presidente Bolsonaro.

Os bolsonaristas insistem na única esperança que lhes resta: ver na indicação do secretário de Estado Marco Rubio para centralizar as negociações com as autoridades brasileiras uma indicação de que será uma conversa dura com aquele que representa a linha dura do governo Trump. De fato, de uma família cubana que fugiu por temer a ascensão de Fidel Castro, o chanceler americano é um radical anticomunista, que ainda vê comunistas embaixo da cama. Suas referências sobre Lula não devem ser das melhores, não apenas pela boa relação que os governos petistas têm com a ditadura cubana, como pelos atos que daí advêm, como o Foro de São Paulo, que Lula fundou ao lado de Castro e demais líderes de esquerda da América Latina.

Claro que essa brecha já deve estar sendo aproveitada pelos brasileiros que fazem trabalho de sapa em Washington para incentivar a ação mais direta do governo Trump contra o governo brasileiro. Mas Trump, como se sabe, é um negociador que só aceita ganhar, e os argumentos financeiros das empresas brasileiras e americanas que têm interesses comuns nos dois mercados falam mais alto no momento. Não se espere que qualquer dos dois governos mude de posição ideológica, mas que encontrem um caminho de negociação benéfico para os interesses comerciais dos dois lados.

Teremos muitos outros embates pela frente, pois não é do feitio de Trump conviver com ideias opostas às dele, a não ser que o adversário seja uma China ou uma Rússia, contra os quais não adianta apenas arreganhar os dentes. Não tenho dúvida de que, na eleição do ano que vem, a direita brasileira terá o apoio de Trump contra a reeleição de Lula. Mas o presidente brasileiro não declarou que preferia a vitória de Kamala Harris sobre Trump nos Estados Unidos? O problema não está nas preferências pessoais dos presidentes, mas na manipulação política das informações para interferir nas eleições ou nas relações comerciais entre os países.

Houve momento recente em que a América Latina era amplamente dominada por governos de esquerda. Hoje a tendência é contrária. Faz parte da prática democrática. O que não pode é acontecer o que houve no Brasil e nos próprios Estados Unidos, uma tentativa de golpe de Estado para impor governos autoritários.

 

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