terça-feira, 7 de outubro de 2025

O roteiro certo em hora difícil. Por Míriam Leitão

O Globo

Conversa entre Lula e Trump foi da forma que a diplomacia desejava: diálogo à distância, clima sereno e possível encontro em terreno neutro

Aconteceu como a diplomacia brasileira queria. Uma conversa à distância, um clima sereno, palavras construtivas e a expectativa de um encontro em terreno neutro, que pode ser a Malásia. O temor era de que se a primeira reunião fosse presencial, antes de as arestas serem aparadas, o risco seria de tudo desandar. Outro perigo era de um telefonema sem preparação prévia. A chance de diálogo entre os presidentes Donald Trump e Lula aumentou muito a partir da conversa de ontem.

Os efeitos negativos do tarifaço já estão acontecendo lá e aqui. O comércio encolheu e alguns produtos que fornecemos estão ficando mais caros nos Estados Unidos. Nosso comércio é pequeno para nós, mas em alguns mercados somos relevantes, como carne, café e laranja. Os Estados Unidos nada têm a ganhar impondo sobre o Brasil tarifas tão exorbitantes.

As dúvidas continuam, contudo. Há quem tema a escolha do secretário de Estado, Marco Rubio, como o interlocutor. Ele é conhecido pela hostilidade em relação à América Latina. Uma preocupação razoável é com o estilo de Trump, impulsivo e imprevisível. A chance é de que haja o encontro bilateral em Kuala Lumpur, à margem da reunião de cúpula da Asean.

Para José Niemeyer, professor de Relações Internacionais do Ibmec, a indicação de que as negociações ficarão a cargo de Marco Rubio foi um “banho de água fria”. Já o professor Leonardo Paz Neves, do Ibmec e da FGV, avalia que Rubio confirma o viés político do caso. Haveria outros interlocutores de perfil mais técnico, como o secretário do Tesouro, Scott Bessent.

O professor Leonardo Trevisan, da ESPM e PUC-SP, avalia que houve influência do empresariado americano que investe no Brasil. A relação é antiga, algumas empresas estão no Brasil há um século, e as tarifas têm prejudicado esses interesses. Outra pressão, segundo Trevisan, vem das mais de seis mil empresas envolvidas no comércio. O aumento do custo do café, por exemplo, afetou bares e restaurantes. Trevisan observa que tanto a nota do governo brasileiro, quanto o post de Trump mostraram que se falou de economia e comércio, em vez das questões políticas. Isso torna possível o diálogo.

Em suma, a diplomacia pragmática que soube esperar a hora certa, e a aliança entre o setor privado do Brasil e dos Estados Unidos estão avançando na tentativa de resolver a pior crise entre os dois países em 200 anos.

O presidente Trump afirmou num post e depois em entrevista no Salão Oval que pode haver um encontro entre os dois aqui ou nos Estados Unidos. Haverá novos passos importantes e uma chance concreta de superação desse estranho litígio entre os dois países, parceiros tradicionais.

O contato Trump-Lula é mais uma derrota para o bolsonarismo, que apostou tanto nos ataques à economia brasileira como forma de conseguir o impossível, uma submissão da democracia brasileira à imposição externa. Não deu certo e agora pode ter um efeito bumerangue.

No mercado financeiro, o dólar caiu mais uma vez no entendimento de que os riscos para a economia brasileira estão diminuindo nesse novo momento da relação bilateral.

Houve muita pressão para que Lula ligasse para Trump. A pergunta “por que ele não liga?” foi feita recorrentemente. Qualquer pessoa com conhecimentos básicos de diplomacia sabe que não é desta forma que se constrói a chance de solução de um conflito bilateral. É preciso que haja preparação. O Brasil soube esperar o momento certo, enquanto continuava dizendo estar disposto a negociar qualquer ponto de economia e comércio.

Quanto à exigência de Trump de interromper o processo judicial contra o ex-presidente brasileiro por tentativa de golpe, essa nem entrou na conversa. Nunca esteve em questão, nem poderia. Seria moldar decisões institucionais brasileiras a interesses comerciais.

Um fator importante para a mudança do tom americano foi a derrubada na prática da tese vendida à Casa Branca de que havia apoio majoritário a Jair Bolsonaro no Brasil, e que a opinião pública condenava o julgamento que ele teve que responder. Novas informações chegaram à Casa Branca derrubando essa versão. A pressão do empresariado americano, a situação da economia americana que não tem respondido bem ao tarifaço decretado contra o mundo, com o PIB desacelerando e os preços subindo, ajudaram a levar ao dia de ontem. Mas fundamentalmente mostrou o acerto da diplomacia brasileira contra a insensatez da oposição.

 

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