A melhora na distribuição de renda das populações oriundas das duas
escravidões do País é também um avanço na emancipação que as libertou pela
metade
Ouço, num link de transmissão sonora e visual do site do Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), a exposição com que seu presidente, Marcelo
Neri, dá aos jornalistas a boa notícia de que na última década a distribuição
de renda no Brasil melhorou. Sumariza ele os resultados do estudo A Década
Inclusiva (2001-2011) - Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda. Diminuiu a
distância entre os mais ricos e os mais pobres. Ao mesmo tempo, tenho diante de
mim a primeira página de O Estado de S. Paulo de 5ª feira. Nela, uma fotografia
de Tiago Queiroz retrata um miserável encolhido de frio sob um improvisado
barraco na rua, feito de placas de propaganda de candidatos a vereador na
cidade de São Paulo.
O nó da feliz estatística anunciada está em baixo daquele tapume. A começar
pelo fato de que os dados para medição da distribuição de renda se baseiam na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Aquele barraco não é
domicílio, como não o é o chão em que milhares de pessoas, em nossas cidades,
dormem no pesadelo cotidiano da incerteza. Os que mais carecem não são
alcançados nem pela distribuição da renda nem pelas estatísticas sobre pobreza.
Neri não pretende passar um retrato descabidamente otimista sobre a melhora
relativa na repartição dos ganhos da economia. Antes, assinala que estamos
chegando ao padrão de distribuição de renda que tínhamos em 1960, embora a
sociedade fosse mais pobre que hoje. Poderíamos definir esse meio século como o
longo tempo da modernização da pobreza no Brasil, uma pobreza, agora, de
privações dramáticas. Serão necessários pelo menos 20 anos para chegarmos ao
padrão de distribuição desigual da riqueza de países como os EUA. Mas ainda
temos lastro para incrementar a distribuição de renda e atenuar as
desigualdades que nos afligem. Na média, nossos pobres estão se tornando apenas
menos pobres.
O estudo se baseia no pressuposto de que a pobreza dos 10% mais pobres é apenas
uma questão de grau em relação aos 10% mais ricos. O Bolsa-Família e o programa
de Benefício de Prestação Continuada, programas compensatórios do governo que
incrementam a renda dos mais pobres, são decisivos para atenuar a distribuição
desigual de renda. O estudo econômico não avalia, porém, nem tem por que
avaliar, que esses benefícios não deslocam necessariamente o eixo social de
referência dos beneficiados, especialmente os pobres do campo, cuja economia
pré-moderna é predominantemente baseada na produção direta dos meios de vida.
As doações financeiras do governo, não obstante, corroem a lógica econômica
dessas populações, incrementando em sua vida necessidades sociais que dependem
de mais dinheiro e mais mercadorias de fora de seu sistema econômico restrito.
Um processo clássico de desenraizamento de populações retardatárias da
história, tão característico do Brasil e da América Latina.
É nessa perspectiva que se pode analisar uma das importantes constatações do
estudo, a de que "a renda daqueles que se identificam como pretos e pardos
sobe 66,3% e 85,5% respectivamente, contra 47,6% dos brancos". Uma de suas
conclusões é a de que: "Mais que o país do futuro entrando no novo
milênio, o Brasil, último país do mundo ocidental a abolir a escravatura,
começa a se libertar da sua herança escravagista".
Ora, a distinção censitária de pretos e pardos e, aqui, a indicação da
melhora diferencial que tiveram na distribuição de renda precisam ser
devidamente matizadas. O censo mostra que a maior concentração dos que se
identificam como pardos está no Norte do País e a maior concentração dos que se
identificam como pretos está no Nordeste litorâneo, o chamado Nordeste
açucareiro. Embora haja uma tendência confusa no sentido de tratar os pardos
como negros que se envergonham de sua negritude, o fato é que a concentração
regional nos diz que os pardos não são mulatos, são pardos mesmo, como eram
classificados no período colonial os índios administrados, aqueles submetidos a
cativeiro. Oriundos, pois, de uma escravidão jurídica e sociologicamente
distinta da escravidão negra, formalmente libertados pelo Diretório dos Índios
do Maranhão e Grão-Pará, em 1755. Diferentes do negro libertado pela Lei Áurea
de 1888. Ambos os grupos mantidos à margem da liberdade jurídica que lhes fora
concedida e reduzidos a formas disfarçadas de servidão.
Nesse sentido, o que aparece como melhora na distribuição de renda, em
relação sobretudo às populações oriundas das duas escravidões que tivemos (e da
terceira que ainda temos), é também um avanço na emancipação que as libertou
pela metade. O pequeno incremento de renda que os setores mais pobres da
sociedade tiveram na década permite-lhes, ainda que na crua contradição de
inserção mais ampla no mercado e maior corrosão de seus costumes e de seu modo
de vida, acelerarem sua travessia histórica para a sociedade moderna.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE
FILOSOFIA, DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE EXCLUSÃO SOCIAL, A NOVA DESIGUALDADE
(PAULUS)
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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