Cientista política reflete sobre as avaliações em andamento dos fatos
políticos que redundaram no que se chamou "mensalão"
Desde que o País se redemocratizou, a importância do conhecimento dos
cientistas políticos cresceu e sua presença na mídia também se tornou mais
constante, especialmente em momentos eleitorais ou de possíveis crises
políticas. Passaram a estudar com mais rigor e mais recursos metodológicos o
comportamento político do eleitor, o desempenho dos partidos nas urnas e no
Congresso, impactos do sistema eleitoral sobre o sistema partidário, geografia
do voto, possíveis reformas eleitorais e partidárias e seus impactos na
qualidade da representação, etc. Temas não faltam e creio que estamos fazendo
isso muito bem. No entanto, quando se trata de fazer previsões, os cientistas
políticos, assim como os economistas, passam por situações vexatórias e
humilhantes. Isso é parte do ofício das disciplinas que lidam diretamente com
as resultantes da ação humana que são, por definição, imprevisíveis.
A ciência política tem como objeto o poder, que, como diz Maquiavel, é tema
referido à ação humana: "A política é coisa dos homens como eles
são", ou seja, capazes de patifarias e ações generosas conforme suas
habilidades para lidar com circunstâncias, adversidades, desejos de poder e
valores.
Dito isso, quero refletir sobre a avaliação em torno dos\fatos políticos que
redundaram no que se chamou mensalão. Não faço " previsões nem ilações de
causa e efeito e não ouso falar do desempenho do Judiciário. Metodologicamente
limitada a refletir a posteriori, procuro entender argumentos usados por meus
colegas e analistas políticos em geral que se posicionam de maneira favorável
ao governo do ex-presidente Lula da Silva e ao PT. Entre eles, destaco seis.
Lula não sabia. Num primeiro momento houve o argumento quase unânime de que,
se fatos estranhos ocorreram no financiamento da campanha do PT em 2002, o
presidente deveria ser poupado, pois tudo teria se passado à sua revelia. A
começar pelo denunciante, Roberto Jefferson, o presidente era pessoa honrada e
deveria ser deixada à margem desses fatos. Em entrevista ao Aliás em 10 de
julho de 2005, defendi que, a julgar pela história de nosso presidencialismo a
partir de 1946, era impossível imaginar que qualquer operação política de
grande vulto, envolvendo empresários e uma grande rede de partidos, pudesse
ser feita sem o conhecimento do presidente em exercício.
O mensalão nunca existiu. Essa afirmação persistiu ao longo do processo.
Teria sido uma invenção da oposição e da "imprensa golpista".
Cientistas políticos comprovaram que, a julgar pela trajetória do comportamento
dos partidos no Congresso, nada indicaria a compra de votos. De fato, o
Executivo continuou aprovando seus projetos com as altas taxas de sucesso que
tivera desde o governo Itamar: desde então, cerca de 95% dos projetos
Aprovados pelo Legislativo têm origem no Executivo. Foi nesse compasso que se
votou a emenda da reeleição proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique,
recorrentemente lembrada como uma vitória à custa da compra de votos.
O que o PT fez não tem nada diferente. Nesse caso, trata-se de um direito
adquirido pela classe política de usar privadamente recursos públicos.
Corrupção e negociatas seriam prática comum no Brasil. Por que fazer do PT a
única vítima de uma prática que tem consentimento generalizado? Explica-se que
a crítica deriva do elitismo dos que não querem reconhecer os inegáveis avanços
sociais do País desde 2003. Seria uma vertente da conspiração das elites, mas
com a reafirmação cínica de que "se todos roubam, por que o PT não
pode?" Alguns parlamentares do PT chegaram a afirmar que, como aprendizes,
não souberam fazer isso tão bem quanto os partidos mais experientes.
O mensalão não tem impacto nas eleições, pois o povo não se interessa por
esses assuntos. Se tem ou não impacto, não me cabe avaliar, não é minha
expertise, se alguma tenho. Preocupante é aceitar com naturalidade que o
eleitor não leve em conta temas éticos. De todos os argumentos que tentaram
minimizar a importância do mensalão, esse me parece o mais grave. Foi muito
acionado no início da campanha pelos governistas mais otimistas, embora, depois,
o tom tenha mudado um pouco. O que importa é que foi um argumento corriqueiro
que faz supor que o Brasil possa ser mesmo um país de gente moralmente
indolente. No entanto, à medida que a candidatura de Celso Russomanno à
Prefeitura de São Paulo avançou nas pesquisas, esses mesmos analistas sentenciaram
que o eleitor se tornou um consumidor mais exigente. Pelo menos isso.
Lula passará imune a todo o processo. As teses a esse respeito vão em duas
direções: sua liderança pessoal é inabalável e o lulismo veio para ficar. Se
lulismo significa mais justiça social, é desejável mesmo que continue. As
democracias modernas, contudo, supõem revezamento dp líderes e partidos no
poder. Momentos de baixa acontecem com líderes e organizações partidárias sem
que isso signifique seu ocaso.
Há golpismo no ar. Governistas e analistas simpatizantes do governo têm
insistido nesse ponto. Há golpismo da direita contra os avanços nas políticas
sociais do PT, e o PIG, "partido da imprensa golpista", leia-se toda
a grande imprensa, estaria ao lado dos conservadores. Segundo a nota dos
partidos da base (20/09) em apoio ao ex-presidente, nem o STF escaparia: seria
parte da trama que visa a "golpear a democracia e reverter as conquistas
que marcaram a gestão do presidente Lula". Há uma entidade vigorosa no
ar: os golpistas. A oposição também bate firme nessa tecla quando insiste que o
PT pode acionar qualquer mecanismo não republicano para se manter no poder.
Tendo em vista essas suspeitas generalizadas sobre golpes e golpismo, só resta
concluir que a qualidade da democracia no Brasil ainda deixa muito a desejar.
Um argumento adicional presente entre os militantes do PT é o de que o mais
importante nas eleições de 2012 seria derrotar os tucanos em São Paulo. São
Paulo, de fato, é um caso de pouca rotatividade no poder desde 1982. No
entanto, os governos, lá e alhures, são escolhidos por cidadãos que precisam
ser respeitados em suas escolhas.
Estou relendo Sociologia dos Partidos Políticos, de Robert Michels, que em
termos de realismo político chega a ser mais cruel do que Maquiavel. Baseado em
sua experiência no partido alemão da social-democracia, do início do século 20,
afirma que "à medida que a organização (o partido operário) cres-ce, a
luta pelos grandes princípios se torna impossível". Impossível? Não, claro
que não. Mas certamente é uma tarefa à qual os partidos que se dizem
programáticos precisam dar mais atenção.
Maria Celina D’Araujo, doutora em ciência política, é professora da PUC-Rio
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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