A esquerda política,
compreendida na variedade das suas manifestações, nem sempre teve uma atitude
madura em relação à institucionalidade democrática e aos seus efetivos
problemas de funcionamento na vida real. Muitas vezes absorvida no tema do
partido e da chegada ao poder, a partir do qual se transformaria toda a
sociedade no sentido da justiça e da igualdade - em si, finalidades inatacáveis
-, essa parte do espectro político em geral não considerou devidamente, quando
não os abandonou de todo, aspectos inerentes ao exercício do poder e às suas
articulações institucionais, como, entre outras, a questão da alternância ou
aquela outra, crucial, dos direitos e garantias individuais diante de todo e
qualquer tipo de poder - inclusive nas sociedades
"pós-revolucionárias", a exemplo das surgidas a partir de 1917 e que
hoje, como sabemos, são apenas um retrato na parede.
Deixando de lado a
vertente social-democrata do movimento operário e concentrando-nos na tradição
comunista, era evidente, na esteira de 1917, a expectativa messiânica na
instauração, em prazo mais ou menos curto, de uma "internacional" de
trabalhadores, acima e além de divisões tidas como secundárias, como as demarcadas
pelas fronteiras nacionais.
A "democracia
burguesa" não tinha cabida num cálculo que entendia estrategicamente toda
a época como a da passagem para a revolução proletária: ela, a democracia, era
antes um dispositivo puro e simples de dominação em contextos mais
sofisticados, uma vez que, em situações extremas, a aberta ditadura de classe
revelaria a verdade oculta sob o véu diáfano da fantasia. Estabelecida a
existência das duas classes fundamentais em luta frontal, o dispositivo
democrático permitiria a dominação da classe burguesa sobre a proletária e o
controle sobre os demais estratos intermediários, certamente majoritários na
sociedade, mas não estrategicamente situados no mundo fabril, quer como
proprietários, quer como assalariados.
Uma tal descrição sintética
de fatos pretéritos, necessariamente empobrecedora, não pode ignorar que essa
mesma vertente comunista da tradição das esquerdas conheceria com o tempo,
especialmente nas nações mais avançadas do Ocidente capitalista, alterações
significativas. Na luta contra o fascismo, estabeleceram-se frentes populares
com democratas e liberais, apesar da pesada hipoteca stalinista. No pós-guerra,
partidos comunistas de países importantes, como a Itália, a França e até o
Brasil, tiveram papel proeminente no reerguimento das Repúblicas democráticas
abertas ao tema social. E a ilegalização desses partidos, onde ocorreu, teria
efeitos catastroficamente duradouros não só sobre a esquerda em particular, na
representação que lhe é própria (mas não exclusiva) dos setores populares e
subalternos, mas sobre o sistema político como um todo.
Desgraçadamente, foi
o caso do velho PCB e do Brasil, e está aí para comprová-lo o livro admirável
de Gildo Marçal Brandão sobre A Esquerda Positiva: as Duas Almas do Partido
Comunista, 1920-1964 - a alma revolucionário-insurrecional, que fez a sua
irrupção estridente no putsch de 1935 (mas não no movimento de massas da
Aliança Nacional Libertadora, a ANL, que o antecedeu e bem merecia um outro
desfecho, não militarista); e a alma reformista, propugnadora, precisamente, de
reformas econômicas e sociais que ampliassem progressivamente o capitalismo
brasileiro e democratizassem a sociedade nos quadros da Constituição de 1946.
Pode-se dizer, hoje,
que aquelas duas almas não se conciliaram e do seu conflito não surgiu uma
solução fecunda. A própria adesão plena e consciente de uma parte dos
comunistas do velho PCB à institucionalidade democrática só se daria,
efetivamente, nos caminhos da resistência ao regime de 1964: desde o primeiro
momento, aquela alma reformista esteve presente ao lado de liberais e
democratas na resistência legal ao regime, aproveitando os espaços eleitorais e
demais formas de mobilização pacífica, recusando a luta armada e colocando como
perspectiva as bandeiras da anistia e da Constituinte.
A História é pródiga
em ironias: dois ícones liberais da velha frente democrática, Tancredo Neves e
Ulysses Guimarães, jamais recolheriam o fruto do seu inalterado empenho cívico
dos tempos de chumbo. Ulysses, aliás, teria votação pífia nas primeiras
eleições presidenciais sob a vigência da nova Constituição. À esquerda, com a
crise global do comunismo e, no plano interno, do velho partidão, havia
emergido um partido novo, com vocação hegemônica, supostamente consciente das
limitações da experiência do socialismo real e dos seus partidos comunistas.
Contudo um dos atos mais emblemáticos desse novo partido seria recusar a
presença de Ulysses no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, assim
como, pouco antes, tergiversara canhestramente na assinatura e na homologação
da mais avançada das Constituições brasileiras, bem ao contrário da atitude do
PCB em 1946.
O retrato na parede,
de itabirana memória, talvez não seja de todo inocente. Pode ser que esteja ali
a nos lembrar o quanto os malogros e as insuficiências do passado - em primeiro
lugar, a situação de ilegalidade ou de mera tolerância, entre 1958 e 1964, a
que esteve submetido o PCB - pesaram, e ainda pesam, sobre a nova esquerda dos
nossos dias. O desprezo pelo Parlamento, demonstrado nos fatos que originaram a
Ação Penal 470, ou a perplexidade diante de um Judiciário no uso normal das
suas atribuições de Poder da República, possivelmente derivam, feitas todas as
mediações históricas, de velhas categorias que relegavam a um plano secundário
as formas tidas como "vazias" da democracia política, quando, segundo
esse raciocínio torto, os valores mais altos de um processo
"substantivo" de transformação supostamente se alevantam.
Tradutor, ensaísta, é
um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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