domingo, 18 de novembro de 2012

Um olhar carioca – Gilvan Cavalcanti

Nas análises de balanço sobre a última eleição na cidade do Rio de Janeiro aparecem duas opiniões interpretativas. A primeira encaminha-se na direção de atribuir o fracasso ou êxito de tal ou qual corrente política à ideia de que a cidade é “inorgânica politicamente”. Tenho dúvida sobre esse conceito. Seria verdadeiro se nosso olhar só tivesse voltado para a experiência das sociedades europeias, inclusive, do passado mais recente. Infelizmente é assim nossa cultura política.

Essa forma de abordar, esse prisma vem de longe. Lembro-me do abolicionista Joaquim Nabuco. No pequeno livro “Minha Formação, que pretendia ser apenas um autorretrato, - acabou sendo uma análise do século XIX e abriu as portas para a interpretação do século XX -, ele já acentuava as diferenças da inorganicidade da sociedade americana, mais avançada à época em relação à organicidade da sociedade européia também desenvolvida. Naquela época já dava sinais da percepção que o nosso ocidente seria americano. Portanto, penso que não seja correta essa argumentação. Parece-me um olhar com a vista embaçada

Seria interessante relembrar que o Rio foi uma das cidades que mais fez pela conquista da Constituição de 1988. Partiu daqui boa parte da disposição do agir cívico que se apoderou do país naquele período. A cidade se viu impregnada por um intenso e diversificado associativismo ao redor dos bairros e das favelas, da questão operária, ambiental, da infância, das questões da mulher e racial.

À volta desses movimentos sociais se colaram os partidos de centro-esquerda, além das universidades e dos intelectuais. Toda essa mobilização caminhou, ao mesmo tempo, com uma participação eleitoral de clara oposição ao regime militar e com a luta pela redemocratização, - alcançou o auge na memorável mobilização das Diretas - Já, em 1984 -, que conduziu mais de um milhão de pessoas no comício da Candelária. 

A notável importância na reconstrução de um projeto de país fez do Rio um dos principais, senão o principal, centro de animação e inspiração do núcleo progressista da Carta de 88, cujo espírito foi gravado no seu generoso preâmbulo, que introduziu os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.

O Rio não deixa de seguir o fenômeno das grandes mudanças que o País viveu, tanto no social, como no político. É um enorme laboratório complexo, sem polarização, orgânico versus inorgânico.  Está aberto às descobertas e inovações. É uma democracia de massas, em criação, rumo ao moderno, desde que seja livre a competição e não haja cerceamento dos atores: partidos políticos, sindicatos e as inúmeras organizações existentes na cidade no agir e realizar seus valores e interesses.

É realmente necessário, nesse momento, reconquistar a cidade “orgânica e inorgânica” para o espírito da Constituição que ela tanto ajudou a criar, através do fortalecimento daquilo que o sociólogo Luiz Werneck Vianna já definiu como as “duas democracias” que ela encerra: a da dimensão participativa e a da dimensão representativa.

Portanto, será necessário lutar para devolver à cidade o direito de acesso à política, da qual ela está provisoriamente privada. Para tanto, será indispensável criar mecanismos e espaços de comunicação que permitam que os diferentes segmentos da população voltem a se encontrar e a conversar, incorporando, desta vez, os interesses e as opiniões dos novos seres procedentes dos segmentos emergentes das favelas e periferias.

Somente assim será possível formular uma nova política e construir uma agenda pública que a reconcilie com os valores universais de que falam o preâmbulo da nossa Constituição.

Narrei em outro momento a frase: rumo ao moderno. Qual é minha compreensão sobre o tema? O que é ser moderno? Esse conceito tem tradução e nome: chama-se autonomia! Manifesta-se no agir, - com liberdade -, da vontade da cidadania. Essa vontade passa a ter existência concreta com a vida associativa, dos partidos políticos que arranca vigor, energia, disposição de um mundo independente de agentes do poder administrativo e do poder da lógica econômica.

Há em circulação outra opinião que teria implicação no resultado eleitoral.  Seria a “crise do nosso sistema político eleitoral”. É óbvio que a legislação sobre o assunto é falha, produz distorções. Parece que há uma opinião majoritária da necessidade de uma reforma do sistema. No entanto, quando se fala quais reformas as discordâncias são muitas. Não há acordo sobre os temas dessa reforma. Não há dúvida da sua importância, mas as regras eleitorais não podem ser pensadas como uma panacéia para todos os males. 
   
Estou convencido que o nosso problema é político. Em primeiro lugar, vem logo a questão das alianças. È evidente que as alianças são absolutamente necessárias. Não faz sentido pensar que um partido sozinho ou uma só corrente de pensamento resolverá os problemas de uma cidade, de um estado ou do País. A questão é que essas alianças não são realizadas em cima de programas, de valores. Elas se concretizam por simples interesses eleitorais, pragmáticos. O tempo de televisão passou a ser uma espécie de demiurgo.

Outro problema é a estadolatria dos partidos. Parece-me que as nossas organizações partidárias adquiriram uma cultura de que fazer política significa se ligar na trama dos governos. Enredam-se nas redes do poder administrativo por conveniências eleitorais: conquistar, manter mandatos ou reproduzi-los. Em outras ocasiões aderem, sem nenhuma razão ou argumentos coerentes com sua orientação política de ação.

Foi com um conjunto de propostas que apresentei e foram acolhidas pelo meu partido que ele se apresentou às últimas eleições. Eram ideias e valores sobre a política para a cidade. Posso destacar alguns pontos: o compromisso com a participação da população na elaboração e acompanhamento das políticas públicas municipais; a aposta na transparência, no controle social e no respeito às instituições democráticas como forma de garantir o bom uso dos recursos públicos; a defesa da combinação da sensibilidade política e social com a profissionalização da gestão e da competência técnica; a radical busca de um ensino fundamental e de uma educação infantil de qualidade; a prioridade para o acesso ao sistema público de saúde eficiente; o esforço para a melhoria do transporte público e a mobilidade urbana; a ação permanente em favor da geração de renda e emprego, como melhor alternativa para o combate às desigualdades visando a promoção da cidadania; o compromisso com práticas de desenvolvimento sustentável, cuidando com responsabilidade e competência da limpeza urbana, da destinação final de resíduos sólidos, do saneamento ambiental e da despoluição dos cursos d’água e do estímulo ao uso de energias limpas; a dedicação central às políticas de atenção aos idosos, às crianças em situação de risco social, às pessoas com deficiências e à promoção da equidade de oportunidades entre cidadãos, independentemente de raça, gênero ou situação de renda; a adesão integral aos princípios da ética e da moralidade pública; o forte empenho para o redesenho do pacto federativo; a combinação das políticas compensatórias de renda com ações de qualificação profissional e reinserção no mercado de trabalho; o combate ao populismo irresponsável e ao despreparo administrativo e ao amadorismo; o compromisso com a participação da juventude na administração municipal e de estimular a participação feminina em todos os espaços de poder. Estava convicto que eram idéias reformistas fortes. Ficaram no papel e só ecoaram na sala da nossa convenção eleitoral.

Os tempos são outros e prevaleceram outras visões. Ficamos sem representação no parlamento municipal. Cabe-nos agora encerrar o compromisso com 2012. Manter nossa visão crítica e de forma independente - sem participação na administração -, lutar pelo conjunto de valores aprovados na convenção. Significa também valorizar e aplaudir as decisões acertadas.

Rio de Janeiro, 17/11/2012

Gilvan Cavalcanti de Melo é membro do Diretório Nacional do PPS.

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