No projeto de poder do PT, militantes julgaram lícito o ilegal em nome do
que consideravam legítimo
O julgamento dos réus do mensalão nem faz a República mais republicana nem
de fato põe fim à corrupção. O processo não toca no essencial, apenas no
formal. Na despolitização endêmica que nos torna politicamente menores de
idade, porque partidarizados, mas, de fato, não politizados, é pouco provável
que em algum momento se chegue à raiz do problema. Ao senso comum a
desinformação sugere que, na política, mais um bando de batedores de carteira
tentou assenhorear-se do dinheiro público em proveito próprio.
Para compreender a questão é preciso voltar aos tempos do regime militar,
que preferiu manter a formalidade da lei para meros fins rituais. Cassou
políticos, expurgou o Parlamento, exilou dissidentes, prendeu adversários,
censurou críticos, calou discordantes, torturou e matou. Remendou e manteve a
Constituição. Adaptou leis, revogou as inconvenientes e manteve as
convenientes. Quando isso não bastou, criou os decretos secretos. Desmoralizou
a concepção de lei.
De vários modos, os inconvenientes ocultos das leis convenientes iam
mostrando a cara, a lei como instrumento de violação de direitos. O legalismo
ditatorial teve um efeito perverso: disseminou a convicção de que a lei era
legal, mas não era legítima. Germe da concepção de que expropriar quem tem,
para constituir o poder de quem não tem, é que é legítimo. Em nome do poder,
comprar a consciência dos venais, também.
Com isso, o regime autoritário abriu uma fratura fatal em nossa realidade
política. A ditadura foi combatida pela falta de legitimidade de suas leis, às
quais eram atribuídas, com razão, todas as injustiças, sobretudo aquelas que
vitimavam os pobres e desvalidos. Os longos anos do regime foram os do arrocho
salarial, que abateu as condições de vida da classe trabalhadora e se tornou um
dos fatores da grande transformação de mentalidade e de conduta política do
operariado. Foram, também, os anos de transformação nas relações de trabalho no
campo, com a disseminação do trabalho precário de boias-frias e clandestinos.
Foram os anos do revigoramento do trabalho escravo na Amazônia. Estimativas
indicam que, no mínimo, 200 mil peões escravizados trabalharam na derrubada da
mata e na formação de pastagens naquela região. Foram os anos do amplo
crescimento no número de cortiços e favelas em cidades como São Paulo. Foram os
anos do indiscriminado e genocida contato com um grande número de populações
indígenas isoladas, o que lhes acarretou degradação e desidentificação, como
ocorreu com os crenacarores e os uaimiris-atroaris.
Não foi, portanto, estranha a multiplicação dos movimentos populares,
motivados pela consciência de que o que era legal não era legítimo. Não se
reconheciam nas leis do regime. A convicção popular apontava que, por trás de
tudo, estava o dinheiro. Lembro um caboclo pobre na Amazônia explicando-me sua
repulsa ao dinheiro: somando o valor das notas em circulação chegava ele ao 666
apocalíptico da Besta-Fera. O dinheiro e Satanás eram face e contraface da
mesma coisa.
Nesse meio, a pedagogia política dos movimentos sociais acabaria fundada na
doutrina da legitimidade contra a legalidade. Uma articulada cultura política
de fundo místico se constituiu e se difundiu. A política transitava agora no
âmbito do que o historiador Edward Thompson chamou de economia moral, a mesma
que movera o comportamento coletivo na Revolução Francesa. Nos grupos populares
foi difícil aceitar que mesmo a política partidária, resultante da distensão e
da abertura, fosse uma alternativa legítima de expressão das carências sociais.
Boa parte dos que aderiram ao Partido dos Trabalhadores, nesses grupos, a
ele chegaram divididos quanto aos limites de transigência do partido com o
Estado e as leis. Todos lembram que o PT votou contra a Constituição de 1988,
mas a assinou. Essa ambiguidade custaria ao partido o distanciamento em relação
ao poder e a crescente consciência de que para chegar ao governo teria que
pagar um preço moral: a revogação de seu veto ao capitalismo e às leis que no
entender de muitos de seus membros eram apenas instrumentos da iniquidade
social.
O PT chegou à Presidência em nome de uma ambiguidade política fundante, a
dessa cultura da legitimidade contra a legalidade. Nos primeiros dias do
governo Lula, um conspícuo representante dos setores religiosos do PT deixou
claro que o partido chegara ao governo, mas ainda não conquistara o poder. O
País já não tinha um projeto de nação. Mas o PT tinha um projeto de poder.
Essas fraturas demarcarão a tortuosa trajetória do partido até os autos do
processo judicial e o recinto da Suprema Corte. Houve militantes que julgaram
lícito o ilegal em nome do que consideravam legítimo, o poder a ser conquistado
e mantido. Maquiavel em versão de província. Enveredaram pelo caminho do que à
luz da lei é corrupção, supondo que não o seria se em nome da legitimidade da
revolução, na conquista da equivocada eternidade do poder.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia
da USP, autor, entre outros, de A Política do Brasil Lúmpen, Místico (CONTEXTO)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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