Atribui-se a Winston Churchill a frase segundo a qual os Estados Unidos
sempre fazem a coisa certa. Mas só depois de esgotadas todas as demais
alternativas. Após flertarem a sério com a possibilidade de entregar a Casa
Branca a Mitt Romney, os eleitores norte-americanos reelegeram o presidente
Barack Obama. O candidato republicano defendia um programa fiscal socialmente
regressivo e aritmeticamente insustentável e ameaçava reinstalar
neoconservadores no comando da política externa de seu país. A vitória de Obama
trouxe imenso alívio. Ainda é cedo, porém, para saber se todas as alternativas
incorretas foram descartadas pelos Estados Unidos.
Há de imediato o desafio de se desviar do "abismo fiscal". Nos
cerca de 40 dias que faltam para o 31 de dezembro, democratas e republicanos
terão de chegar a um acordo que evite um ajuste fiscal automático e draconiano,
capaz de lançar os Estados Unidos novamente em recessão, e com eles o mundo.
Algum tipo de acordo é provável, pois as urnas deixaram claro que a
intransigência encarnada no Tea Party levará o Partido Republicano a um beco
sem saída. É improvável, porém, a aprovação de um programa bipartidário que
tenha amplitude e alcance suficientes para enfrentar os desafios fiscais dos
Estados Unidos. Ali, a dívida pública dobrou de tamanho nos últimos quatro
anos, resultado das guerras, da redução de tributos e da crise provocadas pelos
erros do governo George W. Bush.
A verdade é que o restabelecimento pleno da confiança na sustentabilidade de
longo prazo das contas públicas norte-americanas - e, portanto, no dólar -
provavelmente continuará a ser um ponto de interrogação a sobrecarregar as
nuvens da economia global.
A questão fiscal requer respostas politicamente difíceis sobre o
"mix" e o "timing" de aumento de impostos e redução de
despesas necessários para controlar a dinâmica de crescimento da dívida
pública, sem abortar a ainda lenta recuperação da economia. Especialmente
difíceis porque implicam, também, decidir quais grupos sociais e programas
governamentais arcarão com o maior peso do ajuste, o que põe em confronto
visões não raro opostas sobre o "ideal americano". As urnas não deram
respaldo à alternativa republicana, mas tampouco concederam a Obama um claro
mandato para caminhar na outra direção.
Mais nítido foi o mandato recebido em relação à política externa. Depois de
duas guerras e longas intervenções militares (Afeganistão e Iraque), de
resultados incertos e grande custo fiscal, a sociedade americana não está
disposta a pagar o preço em vidas, prestígio e dinheiro de uma política externa
ao estilo George W. Bush. Pesquisa recente do Chicago Council on Global Affairs
indica que 70% dos norte-americanos concordam que o país deve ser mais
cauteloso em sua política externa. Nessa área, como na área fiscal, sobressaem
um desafio imediato e um reposicionamento estratégico de mais longo prazo
(aliás, com implicações fiscais importantes, dado o tamanho da despesa militar
no orçamento do país, tema para outro artigo).
Encaminhar já e concluir no próximo ano uma solução duradoura para as
tensões em torno do programa nuclear do Irã é crucial para os Estados Unidos,
para o Oriente Médio e para o mundo. Se Obama não obtiver êxito nessa
empreitada, assistiremos ao enfraquecimento da estratégia de contenção do país
persa e, quase certamente, a um ataque de Israel às instalações nucleares
iranianas. O Oriente Médio seria lançado num abismo de múltiplos conflitos, com
péssimas repercussões globais. Para evitar esse cenário os Estados Unidos
precisam negociar garantias mutuamente aceitáveis. A demonização do Irã não
facilita a tarefa da diplomacia norte-americana.
Na área externa, assim como na política fiscal, Obama terá de se erguer
acima das condições objetivas da política interna. Um teste e tanto para a sua
liderança.
Além da economia e da segurança globais, há outra e não menos importante
razão para torcer por ele: com a Europa em crise estrutural prolongada, a
prevalência de uma visão mais progressista e menos arrogante do "ideal
americano" é essencial para acrescentar ao prestígio internacional do
capitalismo democrático, conquista civilizatória que, longe de ser perfeita,
produziu até aqui os melhores resultados sociais e econômicos já experimentados
pela humanidade.
Aliás, a questão começa na própria definição do problema. Para parte
importante do Partido Republicano, o principal não é sequer o tamanho dos
déficits correntes e o endividamento crescente, mas sim o peso do setor público
sobre a economia e o desperdício de recursos federais em programas que
induziriam os mais pobres à dependência em relação ao Estado. Para atacar o
sintoma e resolver o problema de fundo os republicanos mais conservadores
acreditam que a solução está em reduzir ainda mais os impostos e aplicar cortes
imediatos e concentrados nos programas sociais. As urnas não deram respaldo a
essa visão fiscal extremada, mas tampouco concederam a Obama um mandato claro
para avançar na outra direção. Ou seja, no rumo de um programa fiscal que ao
mesmo tempo mantenha os estímulos a uma economia ainda em frágil recuperação e
restabeleça a confiança na sustentabilidade das contas públicas americanas, o
que recomenda aumentos de impostos e cortes de despesas que entrem em vigor de
maneira gradual e crescente no tempo. Tão importante quanto, um programa fiscal
que, no mínimo, preserve a já fina rede de proteção social existente nos
Estados Unidos, recentemente reforçada pela reforma do setor de saúde, a
principal iniciativa de Obama em seu primeiro mandato. E que restabeleça e
amplie o sistema de crédito educativo.
Se o ajuste fiscal se fizer à custa dos programas sociais, a tendência de
aumento da desigualdade social e da vulnerabilidade à pobreza, que marcam os
Estados Unidos desde os anos 1980, deverá agravar-se.
Diretor Executivo do iFHC; é membro do GACINT-USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
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