Apesar do compreensível ceticismo sobre a real disposição do Congresso para, finalmente, reformar o sistema político-eleitoral, estarão hoje na pauta de votações da Câmara dois pontos relevantes da proposta apresentada pelo relator, Henrique Fontana. O que ela tem de promissor é o fato de refletir não as preferências do relator, mas a média das inclinações do conjunto partidário, como reconhece o presidente do PSDB, Sérgio Guerra. "Ele trabalhou de fato como relator, e isso é um bom começo."
O que entra em pauta hoje são dois projetos de lei, que podem ser aprovados por maioria simples, ficando para um segundo momento as duas emendas constitucionais integrantes da proposta, que exigirão maioria qualificada de 3/5 dos votos. O projeto que entra primeiro em discussão é o que introduz o financiamento público exclusivo de campanhas. O outro altera ligeiramente o sistema eleitoral, agregando ao voto proporcional uninominal (no candidato a deputado federal, estadual e vereador) a possibilidade do voto na lista partidária, à escolha do eleitor.
O financiamento privado das campanhas no Brasil está na origem de todos ou quase todos os escândalos de corrupção. Foram as sobras da campanha de Collor que o levaram ao impeachment, com todos os riscos que implicava para a democracia naquele momento inaugural. Fernando Henrique enfrentou denúncias de compra de votos para aprovar a emenda da reeleição e de recursos eleitorais não declarados na segunda campanha. A condescendência geral evitou maiores turbulências. Foram as dívidas de campanha não cobertas pelas doações privadas que levaram o PT a tomar empréstimos, em seu nome e, depois, em nome de Valério, que esperava honrá-los, depois, com doações privadas. Afora os pagamentos a Duda Mendonça, todas as transferências do valerioduto destinavam-se ao pagamento de dívidas de campanhas de petistas e aliados. Os que entraram para a base em 2003, como PTB e PP, negociaram ajudas para o pleito municipal de 2004. Se o Congresso aprovar pelo menos este ponto, estará fortalecendo a democracia brasileira por mais de uma razão. Suprimindo o financiamento privado, o gene principal da corrupção estará isolado, embora existam outros. A qualidade das bancadas deve melhorar. Como diz Fontana, hoje, quem não tem um financiador não disputa eleições. "O financiamento público dará oportunidade a novos nomes, favorecendo a qualificação da política." E pode favorecer ainda, acrescento, a eleição de mulheres, índios, negros e pessoas com deficiências, setores absolutamente minoritários num parlamento que ainda não tem a cara do Brasil.
O custo, certamente, será menor que o atual, em que os empresários doadores embutem as doações nos custos de seus produtos ou serviços. Especialmente, quando contratadas pelo Estado, pois este é o objetivo: recuperar multiplicados os recursos doados. O projeto de Fontana, diferentemente de outros já discutidos e não votados, não fixa um valor por voto. Deixa ao TSE a tarefa de propor a verba específica no ano anterior ao do pleito, podendo o Congresso ajustá-la ao aprovar o Orçamento.
Dificilmente o outro projeto será discutido ou aprovado hoje, mas traz outra inovação importante. O sistema belga em que se inspira permitirá que o eleitor vote no sujeito de sua preferencia ou na lista do partido preferido. O brasileiro parece preferir votar no candidato, mas a tradição da lista começará a ser criada, com vistas ao futuro. O Congresso tem à sua frente uma boa chance de dizer à sociedade que tem compromisso com a mudança e com o aprimoramento da democracia. Esta é uma tarefa exclusiva dele. Os partidos, fora o PT, parecem divididos, mas há sinais de que, em cada um, a maioria prefere a mudança ao descrédito que ameaça o sistema.
Thatcher, glória e crime
É feio, é desrespeitoso à vida celebrar a morte de qualquer pessoa, notável ou obscura, como fizeram ontem alguns ingleses e escoceses em relação à ex-primeira ministra, Margareth Thatcher. Como fizeram grupos de americanos quando mataram Bin Laden. Não há dúvida de que Thatcher abriu caminho para a chegada das mulheres ao poder e de que mudou a face do Reino Unido. Suas privatizações foram mantidas pelos governos trabalhistas posteriores.
Os argentinos teriam motivos, mas não saíram às ruas com cartazes. Um ato de Thatcher ainda sangra como ferida na história argentina, o afundamento do navio General Beltrano, no qual morreram 323 militares, de um total de 649 que perderam a vida na Guerra das Malvinas. O navio estava fora da zona do conflito e, por isso, os argentinos sustentam que seu afundamento foi um crime de guerra. Quem viu o filme em que ela foi representada (magistralmente) por Meryl Streep lembra-se da cena. Num momento em que sua popularidade caía nas pesquisas, ao saber que o navio se deslocava, Thatcher determinou ao ministro da Defesa: "Afunde-o". Por isso, Mario Volpe, diretor do Centro de Ex-Combatentes nas Ilhas Malvinas (Cecim) declarou ontem aos jornais argentinos: "Morreu impune, sem ser julgada, sem ter aportado nenhuma contribuição à paz".
Verdade sobre Neruda
Estamos começando agora, mas nossos vizinhos, que também enfrentaram ditaduras, continuam empenhados na busca da verdade. O poeta Pablo Neruda morreu 23 dias depois do golpe de Pinochet. Ontem, seu corpo foi exumado para esclarecer suspeitas de que tenha sido envenenado para não se tornar um ícone da oposição. Para os chilenos, algo doloroso, porém necessário.
Fonte: Correio Braziliense / Estado de Minas
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