Mesmo que as cenas de depredações e de enfrentamentos violentos possam, momentaneamente, encobrir com o manto da incerteza e da insegurança o significado do levante de junho de 2013, é evidente que seu impulso originário é a luta por mais democracia, por mais igualdade, mais liberdade de participação e por mais direitos. É essa a motivação que que tem arrastado milhares de jovens às ruas país afora e que conquistou o amplo entusiasmo da sociedade.
Seja qual for o desfecho mais imediato das manifestações, sua razão de fundo é a luta por acesso à política, que tem sido sistematicamente interditado, em cima, por anéis de interesses que articulam máquinas partidárias e o grande empresariado, sempre justificado pela fórmula do que se convencionou denominar de “presidencialismo de coalização”; e em baixo, pelos mecanismos de controle do acesso ao voto que incluem desde o clientelismo tradicional até a coerção mais direta e brutal realizada pelos mandões locais, do que são exemplo as milícias.
O grito das ruas traz essa voz sufocada pelo amesquinhamento da representação política e por isso seu alvo principal são as instituições cuja legitimidade está fundada no voto. Os sinais da insurgência já estavam dados, mas os altos índices de aprovação da gestão da presidenta impediam que fossem notados – e por aí se vê o quão enganosas podem ser as pesquisas de opinião. As evidências ganham contornos mais nítidos com a crescente descrença no Legislativo, e o excessivo protagonismo conferido ao Judiciário nos últimos anos – sobretudo com o julgamento da Ação Penal 470 -, escancara o enorme vazio de política; a tal ponto que em um dado momento um único juiz da suprema corte parecia encarnar o sentimento de justiça de toda a nação. Mais do que ativismo judicial, contudo, o quadro indicava uma situação de grave subserviência do Legislativo ao Executivo, que tem atuado como principal acionista da desmoralização da democracia representativa {1}. O julgamento do mensalão foi, na verdade, a antessala da explosão das ruas.
Sempre se pode argumentar, evocando Tocqueville, que nada tornava o levante das ruas inevitável, e que ele é um acidente, cujos efeitos serão no máximo o de acelerar processos de reformas já em curso e que iriam ocorrer sem ele. Talvez, se os sinais tivessem sido escutados antes, se as sondas fossem suficientemente sensíveis, o levante não tivesse chegado ao ponto que chegou. Mas sua eclosão é a contraprova do quanto o sistema político brasileiro se tornou autorreferido e por isso mesmo tão vulnerável.
O mais importante agora, no entanto, é constatar que tal como no ataque ao Muro de Berlim cuja derrubada, apesar de previsível, se deu de forma surpreendente, o levante das ruas do Brasil se impôs como força irresistível sem que suas razões sequer precisassem ser justificadas.
A identificação de amplos segmentos da sociedade com ele foi quase instantânea, e para isso contribuiu a sua natureza mais performática que argumentativa, e a conformação desse novo espaço–tempo característico dos movimentos sociais contemporâneos, que se dá nesse ambiente etéreo existente entre o mundo virtual das redes sociais e o encontro presencial das ruas.
Plástico e multiforme, o levante pôde incorporar um largo feixe de anseios represados pelo constrangimento do acesso à política, e por trazer a carga dramática das ruas, num simulacro das barricadas das revoluções democráticas, serviu à catarse de um acúmulo de insatisfação e de indignação.
Com o levante, uma parcela da soberania popular é recuperada pela sociedade, desestabilizando o modelo vigente, baseado na usurpação quase completa do acesso à política.
Seu maior legado deverá ser a correção de rumo de um projeto político de afirmação da democracia a partir de cima, capitaneado por um governo cuja história política tem raiz nos partidos de esquerda, mas que reivindicou para si a prerrogativa de se investir de uma racionalidade tecnocrática, que há muito deixou de consultar os interesses da sociedade, esterilizando sua participação.
Muitas são as evidências de que a ruptura com os anseios democráticos de participação ocorreu logo no início do governo Lula. Em qualquer setor que se fizer a pesquisa as evidências serão abundantes. É ver o que se deu com o Ministério da Cidade, filho de uma longa mobilização popular conduzida pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana.
Passado o primeiro momento do novo governo, a pasta logo é submetida ao balcão de negociação chancelado pela fórmula do presidencialismo de coalizão, e ainda que as lideranças dos movimentos sociais continuassem a frequentar as reuniões dos conselhos que o compõem, suas bases gradualmente se tornam elos remotos de uma cadeia cujo comando está todo encerrado na lógica autopoiética do governo. O mesmo pode ser verificado no Fórum Nacional do Trabalho, igualmente criado na primeira hora da era Lula, no interior do Ministério do Trabalho e Emprego. Logo seu impulso reformista é interrompido em favor de uma ampla coalização operária organizada a partir de cima, com as centrais, deixando as bases sindicais distantes dos processos decisórios, e ainda mais fragilizadas com a manutenção do imposto sindical.
Assim é que o impulso participativo que parecia ganhar novo fôlego com a chegada de Lula ao poder sofre, ao contrário, seu pior revés, de vez que agora, diversamente do que ocorrera com o ciclo FHC, sequer se contaria com um partido de oposição capaz de canalizar os anseios da sociedade, e muito especialmente dos que estão chegando agora à cena pública, como esses jovens que já nascem nas portas do Século 21.
Nos estados e na vida local a interdição das vias de acesso à política a partir do arranjo no plano federal tende a se tornar ainda mais dura. Um bom laboratório para se observar essa configuração é a política educacional e o que vem ocorrendo com as escolas públicas.
Concebidas como esteio da formação da cultura democrática em um país que vinha de uma longa história de exposição ao autoritarismo, a escola deveria gozar de autonomia para se converter no berço da formação da cidadania, internalizando formas de participação coletiva, que valorizassem a voz de seus estudantes e professores; no entanto, o que se assiste é, ao contrário, sua submissão a uma racionalidade tecnocrática, que cancela quase completamente sua autonomia, silenciando-a no interior de seus muros ao desqualificar os sindicatos de seus profissionais e ao esvaziar suas instâncias internas de participação coletiva. A redução da escola a um serviço, cuja eficiência deve ser avaliada por indicadores de proficiência na aprendizagem submetidos aos ditames das tecnocracias locais, é um efeito sensível da privação de política no âmbito da vida pública de estados e municípios.
Em outras áreas, também, o fenômeno se faz sentir. Os processos decisórios envolvendo a definição de grandes intervenções urbanas, como criação de novas vias detransporte ou a remoção de moradores, têm sido realizados sob uma espessa capa de discricionariedade por parte dos executivos municipais e estaduais, não admitindo a participação da sociedade. E para isso o pretexto de atender às necessidades de eventos como a Copa e a Olimpíada é perfeito. Aliás, agora que a rua desnudou o rei, restaram escandalosamente evidentes as razões do empenho dos governos federal e regionais para oferecer o país a esses eventos. É que poucos artifícios se prestam tão formidavelmente ao cancelamento da política.
O caso da luta por um outro projeto de construção da Linha 4 do Metrô no Rio de Janeiro é, sob esse aspecto, exemplar. Tendo à frente as associações de moradores e o Forum da Mobilidade Urbana, liderados por homens e mulheres – quase todos de cabelos brancos – o Movimento “Linha 4 que o Rio Precisa” contestou o projeto apresentado pelo governo estadual, apresentando uma proposta alternativa. Para essa causa conseguiu mobilizar o apoio de diversos parlamentares, do Clube de Engenharia e do Ministério Público, construindo uma opinião tecnicamente fundamentada e utilizando todos os canais de participação criados pela democracia de 88. No entanto, foi arrogantemente ignorado pelo poder público. E desse enorme esforço organizacional resultou um profundo sentimento de impotência em face de um governo que já não precisava mais consultar a sociedade para tomar a decisão de investir cerca de R$9 bilhões em um projeto comprometido por graves vícios técnicos, e cujas motivações de fundo somente se tornam nítidas quando se considera que sua lógica obedece às razões particularistas dos anéis de interesses que articulam o círculo governante, as grandes empreiteiras responsáveis pela obra e a concessionária que administra o Metrô. A dura derrota do movimento deixava claro que às autoridades já não era necessário consultar a sociedade civil organizada, e que para assegurar no próximo ciclo eleitoral a sua quase ilimitada discricionariedade bastaria acionar as engrenagens de sua fábrica de votos, cuja captura já quase nada tinha a ver com a política {2}.
Com o levante das ruas e a recuperação de ao menos parcela de sua soberania a sociedade deverá se reorganizar, reatando os elos entre sindicatos, associações e movimentos sociais, e abrindo novos espaços para o diálogo e a gradual reconquista de espaços nas diferentes áreas da vida pública. Disso se poderá esperar muito mais do que simplesmente serviços públicos mais eficientes, mas toda uma nova institucionalidade democrática, que multiplique em todas as esferas da vida brasileira uma cultura mais substantivamente participativa. Disso também se poderá esperar uma reforma profunda da política, que revitalize os partidos e recupere para a cidadania o poder do voto.
OBS: a palavra Levante é definida pelos dicionários como “manifestação coletiva contrária”, “motim” e “revolta”. Mas também como “Lugar onde o sol nasce”.
Marcelo Burgos (Prof. da PUC e da Coord. do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES-PUC-RJ).
NOTAS:
{1} Sobre o assunto, ver Boletim Cedes/abril de 2013.
{2} Sobre o assunto, ver Boletim Cedes/janeiro-março de 2012.
Cf. Boletim CEDES, jul./set. 2013.http://www.cis.puc-rio.br/cedes//
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