Silvio Pons. A revolução global. História do comunismo internacional (1917-1991). Rio de Janeiro: Contraponto; Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2014. 575p.
- Gramsci e o Brasil
Nas últimas semanas de agosto de 2014 foi lançada entre nós, a propósito da trajetória do comunismo no século passado, um livro — destinado a se tornar referência — do historiador italiano Silvio Pons, vice-diretor da Fundação Instituto Gramsci. A obra procura traçar, em uma análise de fôlego pouco comum, a história do comunismo internacional. Nessa análise, Pons detecta elementos centrais da cultura política comunista, demonstrando como os comunistas aderiram dogmaticamente a esses elementos, tornando-se incapazes de se adequarem a novos contextos históricos. Com isso, a necessidade da leitura de Pons torna-se evidente. Suas reflexões, ao explicitar essa revolução irreformável, evidenciam a necessidade de profunda revisão e reforma da cultura política das esquerdas, tornando-a adequada para os desafios e possibilidades do século XXI.
O livro é resultado de um intenso processo de pesquisas desenvolvidas por Pons desde o início dos anos 1990. Para compor sua análise, Pons consultou fontes de importância ímpar, tendo tido acesso a uma série de documentos soviéticos, além de ter consultado arquivos relevantes dos partidos comunistas europeus. Assim, possuindo em mãos esse imenso corpo documental, Silvio Pons procurou traçar integralmente a história do comunismo internacional.
Em relação à historiografia produzida sobre o tema, a obra pretende superar determinadas análises que compreendem ascensão e queda do comunismo internacional unicamente a partir de fatores estruturais. Nessa perspectiva, tanto o surgimento quanto o declínio do Estado soviético estariam conectados a crises estruturais. A insuficiência desse tipo de análise, na visão de Pons, reside no rebaixamento da função das ideologias e dos sujeitos do processo histórico.
Analisar o comunismo internacional, segundo Pons, significa situá-lo historicamente no interior de um processo radicalmente aberto, avesso a qualquer pretensão de inevitabilidade, percebendo-o simultaneamente como uma realidade e uma mitologia capaz de influenciar a política mundial. Nesse sentido, as análises do autor são capazes de abarcar um tempo longo, sem perder de vista o tempo curto e a dinâmica dos acontecimentos, valorizando o papel dos mais diversos sujeitos na construção do comunismo. Portanto, as reflexões do autor apontam para o processo de construção e desmantelamento do comunismo internacional.
A compreensão desse importante fenômeno que atravessou o século XX, na perspectiva de Pons, passa pelo nexo indissociável entre revolução e guerra. Para o autor, a revolução bolchevique e seus desdobramentos são marcados pelo momento histórico originário, a Primeira Guerra Mundial. Nesse nexo, a figura de Lenin é fundamental. A teoria do imperialismo aponta para a necessidade da revolução internacional em razão das contradições inerentes a esse sistema.
Para Pons, Lenin diverge de Marx em suas análises acerca do caráter internacional do capitalismo. Enquanto Marx se preocupa com a mundialização da produção da economia capitalista, o cerne do problema de Lenin reside na perspectiva catastrófica gerada por esse mesmo desenvolvimento. Para Lenin, as contradições gestadas pelo imperialismo terminariam por produzir graves conflitos bélicos mundiais, semelhantes àqueles que possibilitaram a eclosão da Revolução de Outubro.
Partindo dessa elaboração de Lenin, Pons aponta para um elemento na cultura comunista que não foi suficientemente analisado e observado pela historiografia. Ele afirma que esse catastrofismo, inaugurado por Lenin, é um dos componentes mais fundamentais na organização desta cultura política. A perspectiva de catástrofe próxima orientará o internacionalismo bolchevique em todo o seu percurso.
Nesse sentido, o autor toma a experiência da Primeira Guerra Mundial como terreno histórico originário da cultura comunista, apontando que tal experiência se estrutura como um dogma, não passível de ser questionado ou reformado mesmo nos momentos mais críticos, servindo como o elemento central de legitimação e construção do Estado soviético sob o domínio de Stalin.
Nesses termos, a construção do socialismo em um só país, empreendida por Stalin, não significa o abandono da perspectiva internacionalista e catastrófica. Essa estratégia representa, pelo contrário, uma forma de adequação da perspectiva internacionalista ao novo contexto, no qual as esperadas revoluções europeias não ocorreram, fazendo com que o socialismo soviético se mantivesse isolado. Diante disso, o Estado assume a característica de sujeito da revolução mundial.
Esse incrível fortalecimento do Estado soviético é também conduzido pela expectativa da catástrofe. A URSS, considerada uma ilha circundada pelo capitalismo, aguardava a emergência de outro conflito bélico de proporções mundiais. Assim, era necessário fortalecer o Estado a partir da ideia da segurança nacional. É essa psicose da guerra a justificativa dos expurgos promovidos durante o Grande Terror staliniano. Nesse sentido, Pons consegue comprovar e levar adiante as notas de Gramsci acerca da presença da “estadolatria” na URSS, demonstrando que a construção do Estado soviético se ancora mais na repressão do que na produção do consenso a partir da sociedade civil.
Internacionalmente, essa política de idolatria ao Estado soviético e seu líder termina por gerar posturas monolíticas no movimento comunista internacional. Expurgando-se as divergências, sobretudo as trotskistas, os partidos comunistas europeus puderam alinhar-se aos dogmas da cultura política bolchevique, independentemente da existência da Internacional Comunista (Komintern).
A Segunda Guerra Mundial aparece como confirmação das teses de Stalin acerca da inevitabilidade do conflito mundial e do confronto final entre capitalismo e socialismo. A vitória sobre os nazistas, apesar de inesperada e surpreendente, altera o nexo originário entre guerra e revolução. Enquanto, no fim da Primeira Guerra, os comunistas se engajaram na possibilidade de revoluções na Europa, ao fim da Segunda Guerra essa possibilidade se encontra fora de questão. No segundo pós-guerra, o Estado soviético transforma a revolução mundial em uma expansão territorial, avançando com o Exército Vermelho por outros territórios, sobretudo do Leste Europeu.
A construção do bipolarismo se encontra conectada a essa expansão do Estado soviético. Mesmo com o fim da Segunda Guerra, os soviéticos não abandonaram a perspectiva da catástrofe próxima. O contexto desse período é compreendido a partir da teoria dos dois campos. Haveria o campo imperialista e reacionário, que seria combatido pelo campo anti-imperialista e democrático. Para os soviéticos, esses dois campos se enfrentariam inevitavelmente na disputa pela hegemonia. Em virtude disso, era necessário tornar a URSS uma superpotência mundial.
A supremacia da URSS também se dá dentro do movimento comunista internacional. Segundo Pons, a criação do Kominform representa tal supremacia. Stalin, por meio desse órgão, procurava controlar a fidelidade dos partidos comunistas à cultura política bolchevique.
Além da ruptura com a Iugoslávia de Tito em 1948, há a emergência da revolução chinesa de 1949. Stalin, na análise de Pons, não se interessava decisivamente pela revolução na Ásia, chegando inclusive a não desejar o surgimento do comunismo na China. Todavia, nesse momento, apesar das divergências, a China consegue tornar-se um Estado revolucionário sob a proteção de Moscou. A ruptura decisiva somente se daria no período Khruschev.
Estabelecendo um balanço de Stalin, Pons é categórico. O legado de Stalin, apesar da vitória sobre os nazistas e do desenvolvimento da potência soviética, foi a “psicologia de guerra e o Estado de segurança total, simbolizado pelos milhares de quilômetros de arame farpado que cobriam as fronteiras da URSS e dos outros países comunistas” (PONS, 2014:359).
Mesmo Khruschev, no projeto de desestalinização desenvolvido a partir do célebre XX Congresso do PCUS, não foi capaz de promover a reforma da cultura política comunista e do legado de Stalin. Para Pons, o relatório de Khruschev procurava separar a figura de Stalin do Estado soviético, sem, por outro lado, prever uma reorientação dos comunistas. Deste modo, os limites da política de Khruschev se evidenciam no trágico episódio da invasão húngara em 1956.
Além de demonstrar os limites de Khruschev, a invasão da Hungria revela a fragilidade do império soviético construído por Stalin. Com o sufocamento da proposta de renovação húngara, torna-se ainda mais evidente que a manutenção da estrutura de domínio soviético sobre outros Estados poderia somente ser conservada a partir do autoritarismo do Estado. Além disso, as frágeis bases consensuais da URSS, internacionalmente construídas em torno do mito de uma proposta de modernidade alternativa anticapitalista, começam a se desmontar, causando a ruptura de diversos intelectuais com o comunismo.
A crise deflagrada pela invasão de 1956 se torna mais aguda com o cisma sino-soviético de 1962. Khruschev promoveu certo recuo na cultura soviética da catástrofe, lançando uma estratégia de “coexistência pacífica”, respeitados os limites soviéticos no contexto da Guerra Fria. Mao Zedong, líder chinês, considerou tal proposta como um abandono da estratégia de revolução mundial, criticando duramente o papel da URSS como Estado-guia na condução da revolução mundial. Assim, diante do cisma, a China passou a considerar-se como o real Estado revolucionário.
Na análise de Pons, o conflito entre Moscou e Beijing é crucial para a compreensão da proposta de revolução mundial dos comunistas. A ruptura assinala, definitivamente, o fim da unidade do movimento comunista internacional. Consolidada a ruptura, os chineses se encontravam livres para desenvolver sua política centrada no nexo entre revolução e descolonização do terceiro mundo, nexo que jamais havia sido aceito pelos soviéticos.
Todavia, a grande crise de legitimação do comunismo internacional ocorre em 1968. A repressão na Tcheco-Eslováquia e os movimentos de Maio de 68 assinalam a crítica ao autoritarismo e aos projetos de engajamento promovidos até então. Nesse momento, os jovens que se voltavam contra os valores da modernidade capitalista ocidental não mais aderiam ao projeto comunista. Assim, essa crise de legitimação desnuda o processo de crise da mitologia soviética entre as novas gerações, que não mais consideravam a URSS como um projeto válido de modernidade alternativa anticapitalista.
Portanto, desde a metade dos anos 1950 a URSS sofria diversos abalos em sua estrutura. Mas tão forte quanto os abalos era o apego dos dirigentes soviéticos aos dogmas de sua cultura política. Mesmo após a grande crise de legitimidade de 1968, os soviéticos adentram os anos 1970 crendo na clara possibilidade da revolução mundial, baseados em sua visão dicotômica e esquemática do mundo. A crise do capitalismo finalmente havia chegado, e a URSS ampliava sua influência sobre a Ásia e Oriente Médio. Todavia, aquilo que parecia sua vitória escondia, na verdade, seu grave declínio. Os próprios Estados ligados ao comunismo soviético não eram capazes de prosperar, entrando em sérios conflitos entre si mesmos, como no caso de Vietnã e Camboja.
No início dos anos 1980, os dirigentes comunistas não haviam percebido que o mundo bipolar se tornara multipolar. Além disso, por essa ausência de realismo, os soviéticos assistem à recuperação dos países do Ocidente e do Oriente com as reformas de mercado capitaneadas por Reagan. Assim, Gorbachev assume um Estado mergulhado em profunda crise, levada adiante pela incapacidade reformadora de uma gerontocracia formada nas bases do stalinismo.
O novo modo de pensar de Gorbachev, na análise de Pons, jamais rejeitou o papel da URSS como líder da revolução mundial. Nesse ponto, Gorbachev era tão bolchevique quanto qualquer outro dirigente. Todavia, era necessário propor reformas internas na URSS para que o Estado pudesse retomar com mais força seu papel no cenário global. No entanto, a tentativa de reforma é incapaz de conter a avalanche da crise.
Nesse sentido, a queda do Muro de Berlim é emblemática. A recusa de Gorbachev em reprimir as revoltas ocorridas na Alemanha Oriental demonstra com limpidez, e de forma definitiva, a ausência de legitimidade e consenso da URSS. Em pouco tempo, os alemães orientais, quando se viram distantes da ameaça de repressão armada, derrubaram o símbolo maior da visão bipolar, dicotômica e catastrófica dos soviéticos, gerando, em enorme efeito dominó, a queda dos Estados ligados à URSS. Portanto, a crise terminal ocorre exatamente quando desaparece o que sustentava a condição soviética no cenário geopolítico da Europa centro-oriental.
Observando essas reflexões acerca da história do comunismo internacional, podemos perceber que Pons detecta determinados elementos centrais e essenciais da cultura política comunista. Tais elementos — a teoria catastrófica do imperialismo de Lenin, amalgamada à centralidade do Estado imperial soviético — conduzem a política soviética até sua derradeira crise. Com isso, o autor é capaz de perceber uma revolução que se cristaliza no tempo, extremamente apegada a suas origens e a seu terreno histórico originário. Incapaz de perceber os movimentos históricos e políticos, os soviéticos transformam a história em teleologia com fim determinado, elevando-a à categoria de mito. E, como todos os mitos, tal teleologia jamais poderia ser questionada, sob pena de profunda desorganização social e política.
A reflexão de Pons é fundamental para um pensamento de esquerda preocupado com a história e com as condições do século XXI. No prefácio brasileiro, Daniel Aarão Reis Filho aponta que as análises de Pons são importantes para a reconstrução da utopia socialista em nosso tempo. Entretanto, tais análises parecem conduzir para o caminho oposto, e sua contribuição maior reside exatamente nesse ponto. A utopia socialista, em Pons, aparece como um mito, incapaz de observar a realidade e reformar-se, restando uma peça alheia aos novos tempos. Nessa perspectiva, a história do comunismo internacional de Pons contribui para as esquerdas do século XXI no sentido de apontar a necessidade de uma revisão histórica profunda da cultura política comunista. Retomando o diagnóstico gramsciano dos anos 1930, Pons parece propor a necessidade de uma inversão nos termos daquela cultura, reconhecendo a primazia do consenso sobre a coerção e da realidade histórica sobre os mitos.
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Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é mestrando em História e Cultura Política pela Unesp/Franca e bolsista Capes.
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