sábado, 3 de outubro de 2015

Alberto Carlos Almeida - A política como ela é

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Otto von Bismarck, o unificador da Alemanha, afirmou que as pessoas não poderiam dormir tranquilas se soubessem como são feitas as salsichas e as leis. A frase sugere algo muito importante e que, na maioria das vezes, é incompreendido por todas as pessoas, inclusive aqueles que não fazem política, mas precisam acompanhá-la de perto por causa da influência que ela exerce em suas vidas. Para fazer leis é preciso fazer política. É melhor que as pessoas não saibam como a política é feita, mas nem sempre isso é possível.

O PT e o PSDB vêm sendo muito criticados ultimamente por causa de suas incoerências. As críticas vêm de dentro dos próprios partidos ou mesmo de intelectuais, economistas e militantes ligados a cada um deles. Recentemente, a Fundação Perseu Abramo lançou um documento crítico à atual política econômica do governo Dilma, no qual afirma que as medidas econômicas implementadas neste ano, de ajuste fiscal, são a causa da recessão e da perda de empregos. Como se sabe, a geração de empregos é umas das mais importantes bandeiras do PT. Lula foi eleito em 2002 com o mote da geração de 10 milhões de empregos. Dilma foi reeleita em 2014 com um dos mais elevados níveis de emprego dos últimos tempos.

O PT não está sozinho nas supostas incoerências. Na semana passada, 50 deputados do PSDB votaram contra o veto da presidente ao projeto que acabava com o fator previdenciário. Seria uma incoerência, uma vez que essa medida foi obra do PSDB, durante o governo Fernando Henrique, e é fundamental para algo sempre defendido pelos tucanos, o equilíbrio fiscal. Não é a primeira vez, neste ano, que o PSBD vota, na Câmara, pela derrubada do fator previdenciário. Em ambos os episódios, no dia seguinte ao da votação, jornais e blogs foram inundados de artigos críticos à atitude do PSBD, a maioria deles escritos por pessoas ligadas ou simpáticas ao partido. Em todos os artigos, o argumento central era que o PSDB estaria jogando fora seu legado e abandonando seus valores.

Bismarck irmana-se a Maquiavel na compreensão que tiveram da atividade política. Lamentavelmente, a popularização do pensamento de Maquiavel, aliás como quase toda popularização, diminuiu a profundidade de seus ensinamentos. Maquiavélico se tornou um adjetivo negativo: significa fazer o mal, ser dissimulado, falso, entre outras coisas. Quando o pensador italiano é citado pela grande mídia, aparecem citações como: Maquiavel disse que o mal tem de ser feito de uma só vez, e o bem aos poucos, ou ainda, segundo Maquiavel, é melhor ser temido do que amado. De novo, a visão superficial do que ele nos ensina é o que prevalece.

Maquiavel mostra, acima de tudo, que a política tem uma ética própria, que não coincide com a ética cristã. É difícil as pessoas entenderem e aceitarem isso. A ética cristã, dominante no mundo ocidental, ensina que é preciso fazer sempre o bem. Fazer o mal merece recriminação. Dependendo da religião, recorre-se ao perdão dos pecados, sempre com o compromisso de que o mal não seja repetido. Há religiões mais rígidas, segundo as quais o comportamento individual é estritamente regrado, para que jamais se corra o risco de cair no mal. Nesse caso, não haveria necessidade de perdão.

"Não mentirás" é o oitavo mandamento do Deus cristão. Suponhamos que duas nações estejam na iminência de entrar em guerra. Aquele que agir primeiro, e sem aviso, deixará o outro lado em desvantagem. O mandamento divino indica que, na comunicação entre os líderes dos países, eles falem somente a verdade. Nesse caso extremo, porém, falar a verdade colocará em desvantagem sua própria nação. Muitos podem crer que é assim por se tratar de um caso extremo, uma situação de guerra. Mas não é. Vale ainda lembrar o emblema máximo da ética cristã, o Sermão da Montanha. Nele, Cristo afirma que, se um inimigo bater em um lado de sua face, você deve dar o outro lado. Imagine-se isso aplicado ao conflito entre as nações ou mesmo a negociações comerciais bilaterais.

Maquiavel mostrou que a ética cristã pode se aplicar bem ao mundo privado, mas é de pouca valia para o mundo público. O pensador florentino mostrou que há uma ética específica da política, uma ética pública, uma ética de Estado, que com frequência entra em conflito com a ética cristã. Pela ética cristã, a coerência é um valor. Todos ficariam satisfeitos se o PT e o PSDB fossem coerentes 100% do tempo. De acordo com a ética pública, porém, isso não é possível. Há coisas a serem feitas, pelos dois partidos, e por todos os demais, que violam os preceitos do cristianismo. E tudo é feito publicamente, tendo a população, educada para valorizar o cristianismo, como observadora. Sendo assim, nós, cristãos, podemos afirmar: esta tal de política é um horror!

Max Weber deu um passo adiante e disse que a ética cristã é a ética dos fins absolutos, e a ética pública é a ética da responsabilidade. Quem segue a ética dos fins absolutos pode tomar decisões, baseadas nessa ética, que resultem em prejuízos para si mesmo e para seus liderados. Mas estará em paz com sua consciência, pois não feriu os preceitos éticos em que acredita. O mundo caiu, mas a ética não foi violada. Já aquele que segue a ética da responsabilidade tem que prestar contas a seus liderados e não apenas a sua consciência. Uma vez no governo, tem que tomar as decisões que assegurem a paz, a segurança e o bem-estar a seus liderados. Foi por isso que, em 2003, Lula aumentou a meta de superávit primário e os juros. Foi pelo mesmo motivo que Dilma mudou sua política econômica em seu segundo mandato. É também por isso que os deputados do PSDB votaram contra o fator previdenciário.

As decisões do PT e do PSDB foram decisões políticas, regidas pela lógica e pelos incentivos da política. As críticas feitas a ambos são críticas, na maioria das vezes, intelectuais. Dito de outra maneira, quem segue a matriz política de pensamento compreende, e aceita, as tão criticadas incoerências de PT e PSDB. Quem tem a cabeça formatada pela forma intelectual de ver o mundo repudia de forma veemente o comportamento de ambos.

Cabem ao PT, no momento, todas as decisões que assegurem que o país saia da crise. Pode ser que demore mais ou menos tempo para alcançarmos esse desfecho, mas a ética da responsabilidade indica que tais decisões do governo do PT devem ser tomadas mesmo que sejam contra coisas defendidas anteriormente pelo partido. Segundo essa mesma ética, cabe ao PSDB se posicionar politicamente na oposição. Ser de oposição é votar contra as propostas do governo, e é isso que o PSDB vem fazendo. Lula e o PT fizeram o mesmo, insistentemente, até 2002. Marcaram o terreno da oposição. Quando o eleitorado quis mudar o governo, chamou Lula.

Os terrenos do PT e do PSDB já estão devidamente demarcados, e com muita clareza. O PT defende o pleno emprego, a redistribuição de renda e as políticas sociais. A ênfase do discurso e da prática do PT recai sobre esses temas. O PSDB defende mais eficiência econômica, a redução da inflação e mais investimentos em infraestrutura. É claro que ambos defendem um pouco da agenda do outro. Isso é uma trivialidade. A questão não é essa, mas sim qual a prioridade de cada partido. Em termos de prioridade, imagem, ênfase, defesa de políticas públicas, os dois são claramente definidos. Isso significa que podem transigir em suas respectivas imagens, sem prejuízo da imagem geral.

Isso não acontece apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, em julho de 2011, o Partido Republicano foi muito duro com Barack Obama na negociação do aumento do teto da dívida pública. Irrompeu uma crise política sem precedentes, que resultou, inclusive, na redução da nota de crédito do país conferida pela Standard & Poor's. O mesmo Partido Republicano, porém, durante o governo de George W. Bush, aumentou o teto da dívida sem dificuldade alguma. Em suma, quando um partido é governo, comporta-se de um jeito, e quando é oposição pode vir a fazer justamente o oposto. Isso vale tanto aqui quanto nos Estados Unidos.

Portanto, Tony Blair, do Partido Trabalhista britânico, de esquerda, ao assumir seu primeiro mandato como primeiro-ministro, tomou a decisão de dar total autonomia para o Banco da Inglaterra - o banco central inglês -, para que definisse os juros. Tratava-se de uma medida que sempre sofreu a oposição de seu partido, mas foi o que fez quando chegou ao poder. Haja incoerência! Igualmente incoerente foi o Partido Conservador. Seus parlamentares, que em tese seriam favoráveis à medida, a criticaram duramente. Ou seja, comportar-se de um modo quando se é governo e da forma oposta quando se é oposição vale tanto aqui quanto no Reino Unido.

Tudo isso faz com que as pessoas fiquem desiludidas pela política. Elas se desiludem em relação ao PT, se desiludem em relação ao PSDB, em relação aos republicanos, democratas, trabalhistas, conservadores, em relação a tudo que tenha a ver com a política. A verdade é que quem se desilude faz isso porque algum dia se iludiu. Minha proposta é clara: não se iludam com a política, ela é assim mesmo.
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Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de “A Cabeça do Brasileiro” e “O Dedo na Ferida: Menos Imposto. Mais Consumo”

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